Entrevista a João Estrada

Entrevista a João Estrada

Notas inflacionadas e concursos de admissão absurdos

 

João Falcão Estrada é diretor de internato do Centro Hospitalar de Lisboa Central, uma unidade que com mais de 600 internos em formação, entre formação geral (ano comum) e especializada. Defende o fim do método de contratação de novos especialistas, que levou à inflação das notas de saída, e afirma que o modo de seleção tem que ser mudado porque ninguém acredita que os médicos tenham todos 19!

 

Que acha do novo regulamento do internato médico?

Acho que tem vantagens, desde logo porque resultou de um trabalho conjunto que envolveu a Ordem dos Médicos, a ACSS, o Conselho Nacional do Internato Médico (CNIM) e o Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI). Uma das questões a definir era a do Ano Comum, o que ficou garantido, com a manutenção de um ano de formação obrigatória (formação geral), o que me parece bem, mas que requeria regulamentação.

Tem outras alterações, como as épocas dos exames, uma melhor definição das reafectações e juntas por doença, a promoção da complementaridade formativa e a exigência de revisão dos programas formativos.

 

Quanto à abertura de vagas para especialidades, estaremos a derrapar para uma situação insustentável?

Era já evidente, desde há muitos anos, que com o aumento da formação de médicos em Portugal isto viria a acontecer. Teoricamente temos 1700 a 1800 vagas por ano. Neste momento o número de candidatos é e será superior, porque não só temos os que saem das nossas universidades, como também os cerca de 400 portugueses em formação no estrangeiro, e o concurso é aberto.

 

Na Região Sul, que é a que conhece melhor, o número de internos que temos já é inconciliável com o número de formadores disponíveis?

Depende dos locais e das especialidades e não depende apenas do fator número de formadores. A opinião da Ordem é que sim, mas a minha opinião é de que talvez sim em áreas cirúrgicas, pela relação entre números operatórios e internos, ou por exemplo na MGF, pela indisponibilidade de gabinetes.

Como sabe, o número de pedido de internos é sempre superior ao que a Ordem vem a atribuir. Temos de pensar se, quando os diretores de serviço solicitam internos, é porque são necessários aos serviços ou se, honestamente, sentem que têm condições para os formar. Os critérios da Ordem têm de ser públicos e baseados em critérios objetivos, de forma a serem cientificamente inquestionáveis.

No país ainda há alguma capacidade formativa por ocupar, de resto, tem existido um aumento do número de vagas, mas existe obviamente um limite de capacidades formativas com qualidade.

 

Neste momento é possível fazer mais para aumentar o número de vagas?

Este novo regulamento contempla a complementaridade entre os hospitais com menos ou nenhuma capacidade formativa, entre si, é um caminho.

 

Enquanto responsável pelo internato no CHLC tem pedidos de hospitais para formação em complementaridade?

Sim, a cooperação formativa entre hospitais é uma prática comum no País

 

E consegue dar resposta a isso?

O Lisboa Central tem mais de 600 internos, 500 da formação especializada e 118 do ano comum, e promove cerca de 2 mil estágios por ano, dos quais mais de metade são pedidos do exterior, portanto, essa complementaridade é feita, mas isso potencialmente agrava as capacidades formativas em algumas áreas que só há nos centrais. Mas não é dessa complementaridade que falo, o que acho importante são especialidades como Medicina Interna, Ginecologia, Anestesiologia, Cirurgia Geral, Pediatria, e nessas há alguns bons exemplos de formação de internos dos centrais nos distritais. Em Pediatria, já há muitos anos que os internos fazem um ano num hospital distrital e 6 meses em cuidados de saúde primários.

Se os currículos formativos a rever contemplarem essa complementaridade, poderemos melhorar a qualidade formativa e o número de vagas, mas tem que haver acordo e programação da formação entre hospitais.

 

E os currículos formativos não admitem essa possibilidade?

O atual regulamento é inovador ao sugerir que a formação seja feita em mais do que um hospital. A possibilidade de formação em países da CPLP é igualmente admitida e merece uma abordagem técnica e política desassombrada.

 

O que pensa da possibilidade de se alargar mais a formação que se faz nos privados?

Nem a ACSS, nem a Ordem, nem o CNIM têm objeções, pelo contrário, tanto na formação geral como na especializada. E, nesse âmbito, há claramente complementaridades formativas em curso e a promover.

 

E considera que a qualidade da formação está assegurada?

Não vejo diferenças de postura ou de qualidade. Na Comissão Regional LVT os diretores de internato dos privados têm, felizmente, uma participação e presença equivalente à dos diretores dos hospitais públicos.  Acho que é um modelo que tem que se desenvolver de forma a potenciar a capacidade e qualidade formativa do País.

 

Que acha da participação das comissões de internos?

São importantes, melhoram a integração, intermediação e representação dos internos e podem ser parceiros das direções do internato. Admito que possam ter maior importância na organização formativa, área em que têm ainda alguma margem de progressão e que corresponde à principal função que a legislação lhes atribui…

 

Sem vagas suficientes para todos, haverá mais médicos indiferenciados…

Não gosto do termo indiferenciados…, acho que não há médicos indiferenciados, pode haver médicos sem especialidade, mas indiferenciados é muito depreciativo. Os médicos têm autonomia ou não têm autonomia. Temos é de ser muito criteriosos na atribuição dessa autonomia.

Não existirem vagas da formação especializada para todos os médicos é um problema, sim. Mas não haver nota mínima de acesso também o é, nomeadamente quando médicos da União Europeia competem para essas vagas e no passado recente ocupámos capacidades formativas com classificações de 20%, só porque politicamente não quisemos definir uma nota mínima.

 

Que fazer então aos médicos sem especialidade?

Tem que haver alguma formação complementar num âmbito que não o do internato atual. E há áreas que eu acho que o país precisa, por exemplo a urgência e emergência, as VMER, os cuidados continuados e paliativos, a geriatria ou mesmo a gestão. Acho que temos que inventar formações diferentes, eventualmente não no âmbito do internato, para podermos absorver alguns destes médicos. De facto, a contratação de médicos sem especialidade representa riscos potenciais para a saúde e para eles próprios, para além de que, seguramente, vai baixar o preço/hora da atividade médica.

 

E como é que se contextualiza essa ideia?

Da mesma forma que entendo que a formação pós-graduada – subespecialidades, ciclos estudos especiais, competências – tem de ser gerida pela Ordem, e de forma integrada, também entendo que as formações tidas como obrigatórias em alguns internatos – e serão cada vez mais –, como por exemplo em reanimação ou trauma, devem ser promovidas por entidades avalizadas pela Ordem, ou por ela própria e não pagas a entidades externas. Penso, em resumo, que temos de promover formações creditadas, pré e pós-graduadas, para além das do próprio internato médico e, também, adequar os quadros hospitalares a estas diferenciações.

 

E como é que vê a abertura dos médicos a uma maior diversidade de carreiras?

Não me incomoda. A indústria farmacêutica sempre absorveu médicos e também só vejo vantagens em um gestor hospitalar ser médico, mas isso não resolve o problema das vagas.

 

E acha que os médicos que temos chegam?

Não sei bem onde está a verdade – numas áreas sim, noutras talvez, noutras não. Continua a haver falta de médicos em muitos locais do país, designadamente em MGF na zona de Lisboa e fora dos grandes centros para algumas especialidades hospitalares, com vagas por ocupar. É importante promover a fixação de especialistas à periferia.

 

A contratação de novos especialistas esteve bloqueada quase um ano, que se passou?

A contratação de jovens especialistas tem sido sempre uma dificuldade. Este ano demorou uma infinidade e, assim, houve ainda mais médicos a optar pela privada.

A estrutura política do país vai ter que decidir o que quer em termos de SNS. A manter esta política e estes timings de contratação, o que vai acontecer, como já vai acontecendo, é que muitos dos recém-especialistas optam pelo privado. Há imensos recém-especialistas quem nunca irão exercer nos locais da sua formação, onde gostariam de permanecer e onde aumentariam o número de orientadores de formação e de capacidades formativas. Provavelmente neste momento temos já especialidades com mais médicos no privado do que no público. Em certas especialidades não temos falta de médicos, temos é falta de especialistas no SNS, tendência a agravar-se e com implicações nas capacidades formativas.

 

Que soluções defende para a fixação de médicos em zonas carenciadas?

Nós vivemos num absurdo de contratação no fim da especialidade. Há um concurso nacional em que as pessoas são escolhidas por nota e nem o médico escolhe o hospital nem o hospital escolhe o médico. É preciso mudar a forma de contratação. Para que é que um hospital que precisa de um especialista em cirurgia da mão vai contratar um especialista em cirurgia do pé? Só por causa da nota?

E no fim nenhum fica satisfeito, o que não promove a fixação dos médicos, nem a organização previsional de nenhum serviço. A fixação tem de ser feita muito antes dessa fase, idealmente no início do internato médico. A verdadeira questão é como o vamos conseguir fazer!

 

Ao fim destes anos todos como diretor de internato, como se sente?

As direções de internato (DIM) têm um papel muito importante na gestão e organização da formação dos médicos internos, o que é muito envolvente e gratificante. Há centros hospitalares em que o número de internos chega a ser de um terço do total de médicos e onde se promovem mais de 2 mil estágios ano, o que obriga a ter um secretariado eficaz e dedicado.  Temos também um papel de proximidade com os internos e temos de ter muitas vezes uma atitude pedagógica – deveria dizer andragógica – e de conciliação. As CRIM, que integram todas as DIM, têm um papel importantíssimo na organização e gestão da formação. O critério da qualidade formativa e da equidade é, para todos nós, prioritário, a nossa principal preocupação é privilegiar a formação.

Os internos estão lá para se formar, necessariamente em serviço, o que nem sempre se consciencializam, não estão para resolver as carências dos quadros hospitalares.

 

Acha que se mantém uma utilização excessiva dos internos em tarefas que não deveriam ser deles?

Acho que foram tomadas medidas para minimizar este problema. No entanto, é papel do internato médico analisar as condicionantes à qualidade formativa e o uso excessivo de horas em serviço de urgência é uma delas. Mas a tendência crescente em não fazer serviço de urgência na urgência geral pode também ser perniciosa em termos formativos.

 

A pressão política pode causar a degradação da formação médica?

Temos um limite na capacidade formativa, temos que aceitar e admitir isso. O risco desse limite, ou de haver um limite, é haver uma pressão política para colocar sempre todos os médicos, o que necessariamente condiciona a formação médica.

Mas, nem a Ordem vai ultrapassar essa capacidade limite, nem o CNIM o vai fazer. E a ACSS nunca ultrapassou as capacidades formativas atribuídas pela Ordem, reconhecendo-a como o órgão técnico com autoridade para o definir. Mas, se os critérios técnicos utilizados na definição das idoneidades e capacidades formativas não forem objetivos, públicos e escrutináveis, pode haver riscos.

E há uma pergunta a fazer: se o ano comum é da responsabilidade do Estado, por ser obrigatório, será que temos de especializar também todos os médicos para depois não os colocar e migrarem para o privado ou para o estrangeiro? A qualidade formativa é cara e terá sempre limites.

 

Temos, portanto, os mecanismos necessários para enfrentar esse risco?

E temos uma grande capacidade de falar uns com os outros, somos todos médicos, mas temos de melhorar em termos de secretariados e de processos de gestão do internato. Não é possível vivermos num Estado que não sabe quantos e quais internos vão sair daqui a três anos e não identificar as necessidades previsionais por especialidade em termos do SNS.

É também necessário definir políticas de contratação de especialistas, tendo em conta que o limite de 12 horas de trabalho contínuo se aplica tanto a internos como a médicos seniores e é uma norma europeia. Nesse contexto, temos também que resolver os problemas das notas de saída, ninguém acredita que os médicos portugueses tenham todos mais de 19!

 

Como saímos desse esquema do 19?

Esta tendência foi muito agravada porque a contratação é baseada na nota de saída, que já vai à centésima. Assim vai acabar com toda a gente a ter 20 e se eu não der 20 ao meu interno vou perdê-lo e vou perdê-lo desmoralizado e a caminho da medicina privada. Para mim, este é o problema mais grave. Tem que haver outra forma de contratação que não seja exclusivamente pela nota do exame final.


24 de abril de 2018

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