"Porquê continuar no SNS? Talvez ainda fique..."

"Porquê continuar no SNS? Talvez ainda fique..."

Porquê continuar no SNS? Talvez ainda fique...

 

Porquê continuar no SNS? A pergunta ecoa no subconsciente, demasiado consciente, dos jovens especialistas.

Ninguém me seduziu ou aliciou. Ninguém me disse que sou importante para a instituição. Ninguém quis saber dos projetos e ideias que tenho para melhorar o meu hospital. Em vez disso, os concursos arrastam-se, o tempo passa e tenho uma vida pela frente para decidir. Porquê continuar no SNS?

Dificilmente terei espaço para desenvolver uma unidade especializada, para me dedicar a uma área específica, aspetos que me realizam a mim enquanto profissional, mas que também potenciam a diferenciação dos hospitais, a sua melhor gestão e qualidade assistencial. Por que hei de continuar no SNS?

Mesmo que fique sei que vou trabalhar não as 40 horas do meu contrato, mas 50 ou mais e ganhar muito pouco por isso. Vou fazê-lo, à custa de horas extraordinárias indesejadas, para tapar buracos, preencher escalas de urgência, gerar números assistenciais. Vou fazê-lo com truques de malabarismo para manter alguma qualidade no serviço prestado, mas sem sucesso... porque é humanamente impossível... e eu não gosto de fazer as coisas mal feitas! Então porquê continuar no SNS?

Vou ganhar menos pelo mesmo trabalho que outros Assistentes Hospitalares, usurpada de um direito constitucionalmente consagrado de que para trabalho igual renumeração idêntica. Sem perspetiva de progressão, sem carreira, sem a ADSE, com menos férias. Porquê então ficar no SNS?

Sei que vou ter alunos e internos a meu cargo, porque ser médico também é ensinar a ser médico. Mas também sei que a minha atividade assistencial me suga o tempo disponível para ensinar, para dedicar aos mais novos o tempo que merecem. Ensinar pelo exemplo também dificilmente é uma opção, pois passo o dia a tentar sobreviver a um chorrilho de burocracias, em frente ao computador e ao telefone e cada vez menos perto dos doentes. Não sei se consigo ficar no SNS...

Quero ter tempo para a investigação, para dar o meu pequeno contributo para mudar a prática médica, para impulsionar o meu hospital. Tenho ideias, tenho parceiros na universidade, há centros de apoio à investigação, há possibilidade de financiamento, mas NÃO HÁ TEMPO NO NOSSO HORÁRIO! Fazê-lo hoje implica abdicar do tempo de descanso, sacrificar férias, penalizar a vida pessoal. Não sei se quero continuar no SNS?

Sei que vão faltar materiais e equipamentos, que todos dias vão haver avarias e constrangimentos técnicos, os exames do meu doente vão demorar demasiado tempo, não vão ser considerados prioritários, vão ser adiados, protelados... e eu é que tenho o doente nas mãos! Não sei se aguento continuar no SNS?

Sei que vou lidar todos os dias com o descontentamento dos meus pares e dos outros profissionais, todos exaustos e no limite das suas capacidades, tornando as relações humanas mais tortuosas, fazendo nascer conflitos em cada discussão de doentes, em cada decisão multidisciplinar.  Mas por que raio vou continuar no SNS?

Mas talvez ainda possa ficar...

Talvez... se me tivessem chamado no fim da minha formação específica explicando que a minha permanência fazia a diferença para a instituição onde trabalho, talvez eu percebesse a importância de ficar.

Talvez se tivessem ouvido a minha ideia para me diferenciar, a área médica que gostava de desenvolver, o que estou disposto a dar, talvez percebessem a importância de eu ficar.

Talvez se a exclusividade voltasse a ser uma opção muitos de nós não precisássemos de complementar os seus rendimentos no privado. Talvez mais de nós ficássemos e seríamos mais, durante mais horas, a dar robustez aos corpos clínicos hospitalares.

Nesta circunstância talvez vestíssemos mais a camisola pelas instituições, cultivando um sentimento de pertença. Revigorar as carreiras médicas criando um panorama de progressividade talvez também ajudasse. Talvez reduzisse a necessidade de horas extraordinárias, porque a geração dos millennials, à qual pertenço, não tem qualquer apetência para trabalhar horas a mais, mesmo que seja para ganhar mais dinheiro, porque prezamos tempo para outras atividades e ainda bem! Porque “um médico que só sabe de Medicina nem de Medicina sabe”.  Talvez houvesse lugar para o ensino, para a investigação, para todas as atividades não assistenciais agora negligenciadas.

Talvez pensasse menos em reduzir horário, em procurar alternativas no privado, em emigrar para a Suécia.

Talvez... se houvesse o regresso à exclusividade, às carreiras médicas, talvez eu ficasse?

Talvez...

 

Sofia Amálio

Internista no Centro Hospitalar e Universitário do Algarve

 

29 de outubro de 2018

Categorias

Categorias

Arquivo de Notícias

Arquivo