A eutanásia do SNS

A eutanásia do SNS

A eutanásia do SNS

 

Na mesma semana em que o Presidente da República ouviu o Conselho de Estado sobre a dissolução do Parlamento, decidiu a Conferência de Líderes, por proposta do Partido Socialista e com o apoio do Bloco de Esquerda, agendar o debate da eutanásia e proceder à votação.

 

Isto, no mesmo tempo em que os profissionais de saúde se debatem com falta de condições, de meios e de políticas claras. Designadamente os médicos, que fazem um infindável número de horas extraordinárias, frequentemente não pagas, para assegurar a melhor assistência possível aos doentes, debatem-se com a falta de equipamentos modernos e ainda com as administrações hospitalares e de agrupamentos de centros de saúde que não decidem, nem têm o rasgo suficiente para decidir, propor soluções e caminhos.

Enfim, o Serviço Nacional de Saúde fenece, por vezes num estertor há muito anunciado e o tempo passa, sem que se note qualquer sinal de reversão deste estadio pré-terminal na caminhada para a morte.

A ministra da Saúde tem assegurado reiteradamente que o SNS é a sua maior preocupação e o objeto de todos os cuidados. Secundada pelo primeiro-ministro.

Mas, na verdade, as práticas colidem frontalmente com o discurso, quer da tutela quer do próprio primeiro-ministro quer dos deputados ligados à maioria que ainda governa o país.

Nestes tempos, não pôde ser recebido com menos do que estupefação o agendamento da renovada lei da eutanásia, que foi apresentada na assembleia no dia 4 de novembro e votada no dia seguinte.

Têm por uso ouvir o que dizem os médicos de família, que trabalham em centros de saúde, onde tudo falta, particularmente colegas seus para corresponderem a todas as necessidades? Já vos terá chegado ao conhecimento de que um milhão de portugueses não têm especialista de Medicina Geral e Familiar? Conhecem a situação na área metropolitana de Lisboa? E a de Bragança? Já se preocuparam em exigir ao governo a retoma séria e organizada das atividades correntes nas USF e centros de saúde?

Atentaram já, porventura, à situação da rede de médicos de Saúde Pública, que enfrentam a pandemia com os mesmos meios de que dispunham em 2019 e que já nessa altura eram acentuadamente deficitários?

Ouviram, numa audição parlamentar, representantes dos médicos de Setúbal dizerem que faltam 70 médicos, 70, no Centro Hospitalar de Setúbal? E que disseram também que até um prazo facilmente previsível de cinco anos, 20 a 25% dos que atualmente estão em serviço vão para a reforma? É do vosso conhecimento, naturalmente, que 87 médicos, responsáveis de vários níveis clínicos deste Centro Hospitalar, se tinham demitido uma semana antes desta audição parlamentar.

Leram as declarações recentes referindo que só no IPO de Lisboa são cerca de 300 o número total de funcionários em falta, entre os quais enfermeiros e naturalmente também médicos? Só este ano a unidade perdeu quase 200 funcionários e que a dificuldade de contratação se deve à competição dos hospitais privados, que pagam melhor e dão mais condições. Leram?

Têm seguido os relatos sobre a situação no Hospital de Vila Franca de Xira, onde a perda de médicos se acumula e o número de utentes cresce, o que exige que se mantenham dezenas de doentes em observação num espaço de estacionamento?

Conhecem os fechos parcelares da urgência do Hospital Beatriz Ângelo, recorrentes também no Hospital Garcia de Orta, na área da Pediatria e da Obstetrícia, recorrentes ainda em hospitais como o Fernando Fonseca ou, de forma até mais grave, no Centro Hospitalar do Algarve?

E no Centro Hospitalar do Oeste, conhecem a situação, a falta de médicos e de condições da urgência, que são frequentemente noticiadas e causam distúrbios na assistência em toda a região de Lisboa?

Sabem o que se passa em Braga, onde se demitiram nove dos 16 chefes de urgência, em protesto contra a falta de condições de trabalho e o desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde?

Conhecem os problemas dos hospitais de Castelo Branco, da Guarda, de Aveiro, de Penafiel, ou da urgência psiquiátrica metropolitana do Porto?

E em Beja? Em Faro? Em Portimão?

Sabem em que condições estão os idosos nos 2500 lares legais, muitos deles com patologias crónicas graves e expostos aos riscos da pandemia?

A lista é interminável e não para de crescer.

Senhoras e senhores deputados;

Será mesmo que os portugueses precisariam que antes da dissolução da Assembleia se tratasse da estranhamente prioritária descriminalização da eutanásia e da sua consagração no SNS?

Não será, isso sim, prioritário resolver os problemas que implicam com a vida e saúde dos portugueses? Resoluções estas que sempre estiveram dentro do alcance legal do atual Governo?

A pressa deste agendamento e do adiar de todos os outros problemas de saúde é uma opção que portugueses e profissionais de saúde não podem deixar de registar e dela tirar as devidas conclusões.  Ou talvez esta estranha pressa decorra do facto que já iniciaram a escrita de uma crónica de uma morte anunciada: a do SNS.

 

Alexandre Valentim Lourenço

Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos



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8 de novembro de 2021

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