Crónicas do Dr. Gago Coutinho

Crónicas do Dr. Gago Coutinho

Por que se demitem os chefes?

 

O Hospital Real de Todos os Santos sempre teve um serviço de urgência. E sempre teve um Físico e um Cirurgião responsável pelo Banco. Desde o século XVI.

O Hospital de S. José igualmente. Desde o século XVIII.

Religiões, Monarquias e República perpassaram mais de 500 séculos de história.

De dois elementos para equipas multidisciplinares, altamente diferenciadas, com pesos sociais e motivações diversas, vários foram os estádios que caracterizaram o tão conhecido Banco de S. José.

As histórias em torno deste Banco são múltiplas e umas mais conhecidas do que outras.

Mas o Banco de S. José sempre foi considerado uma joia da coroa. Ser chefe de equipa em S. José sempre foi assumido como um fator de diferenciação profissional e de reconhecimento interpares.

Sempre foi pioneiro em opções, técnicas, arrojo e solidariedade.

O Banco de S. José não devolve doente. Herda o que muitos não conseguem tratar por limitações de diferenciação e de opções políticas erradas.

Na história ímpar de mais de 500 anos os chefes de equipa foram um pilar do funcionamento desta instituição. Sempre tiveram a compreensão do poder político e das diferentes administrações que o geriam. Muitos Enfermeiros Mor foram Diretores de Banco.

E na História nunca se demitiram. Nunca na História houve uma afirmação de vontade inequívoca em torno de um tema comum entre Medicina e Cirurgia.

E então que levou os Chefes de Equipa de Cirurgia e Medicina a demitirem-se a 6 de julho de 2018?

E o que levou quase duzentos médicos das diferentes equipas a assinarem um abaixo assinado a apoiar os seus chefes?

Ordenados maiores? Não.

Mais subsídios? Não.

Mais folgas? Não.

Reivindicações sindicais várias? Não.

Os Chefes de Equipa assumiram a sua posição porque entenderam que a qualidade da Medicina que prestam está a ser posta em causa. Porque entendem que deixaram de ter condições para melhor tratar os cidadãos em geral e os doentes que a eles recorrem.

Porque, apesar de virem a avisar, desde há vários anos, do envelhecimento das equipas nada tem sido feito. O resultado de uma reivindicação sustentada em factos e não respondida reflete-se hoje na exígua dimensão das equipas, incompatível com as exigências deste Serviço de Urgência.

Porque consideram que a existência de telerradiologia numa urgência polivalente e centro de trauma não é aceitável e não é compatível com o que entendem ser uma necessidade básica da sua prática clínica.

Porque consideram que o sistemático encerramento de camas de cuidados intensivos não é adequado ao movimento clínico ao qual são chamados a responder.

Porque consideram que há limites que são demasiado perigosos de ultrapassar e após os quais já não há retorno possível.

E que sucedeu perante esta nunca vista posição:

O Ministro desvalorizou. Disse que eram manobras dos sindicatos e que a demissão só tinha sido assinada por 2 ou 3 médicos. Para um Mestre em política certamente que esta sua afirmação ficará nos manuais de comunicação, no capítulo do que não deve ser dito.

A Presidente de Conselho de Administração deu razão às reivindicações com a desfaçatez de quem as ouvia pela primeira vez. Documentos muitos e conversas várias certamente que a desmentirão.

A Ordem dos Médicos foi ao terreno e deu a cara a apoiar os Chefes. E bem como os Sindicatos.

Até a Comissão Parlamentar quis ir a S. José falar com os Heróis. Ao que me consta, uma reunião marcada pela frase de uma deputada socialista presente e que afirmou: Tenham paciência!

Passaram semanas e que aconteceu. O Ministro anunciou o maior concurso de sempre. A realidade leva a que saiam mais internistas do que os que entram e na cirurgia nada se acrescenta.

Da telerradiologia tudo está na mesma e sem alteração.

Das camas fechadas de cuidados intensivos ainda nenhuma se viu a ser utilizada.

E, é verdade, os Chefes da MAC também se demitiram. Por iguais motivos

Se ainda ninguém percebeu por que se demitiram os chefes é porque é alguém muito distraído.

E que farão essas personalidades tão sabedoras, mas tão distraídas, se a metade dos cirurgiões que podem deixar de fazer banco o fizerem. Nesse dia, o Banco de S. José, com mais de 500 anos, fechará as portas. Ou poderá talvez passar a ser a Urgência Básica da cidade de Lisboa.



19 de setembro de 2018

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