Entrevista a Jorge Soares

Entrevista a Jorge Soares

Criação dos centros de referência exige coragem política

 

Hoje é Presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e dirige o Programa Conhecimento da Fundação Calouste Gulbenkian, depois de uma carreira longa e exigente. Chegou a diretor de serviço de Anatomia Patológica do IPO de Lisboa aos 35 anos e fez uma carreira académica e de investigação bem sucedida. Orgulha-se de ter criado uma escola e de ter tido como colaboradores e alunos de doutoramento os professores da cadeira em três faculdades – as duas de Lisboa e ainda a da Beira Interior. Jorge Soares, que presidiu também à Comissão Nacional para os Centros de Referência, lamenta que a experiência não tenha sido feliz.

 

Depois de uma carreira diversificada como médico, que importância tem para si dirigir o Programa Gulbenkian Conhecimento?

Este é um desafio diferente. Eu já tinha feito várias coisas na vida, estava numa altura disponível para fazer algo diferente. Então vim dirigir o Serviço de Saúde e de Desenvolvimento Humano da Fundação, que depois deu origem ao Programa Inovar em Saúde, onde procurámos fazer diferente com os instrumentos de que dispúnhamos.

 

No tempo que leva nestas funções qual foi o trabalho que considera mais relevante?

Diria que que haverá pelo menos três relevantes, o mais recente foi o Stop Infeção Hospitalar, que abordou um problema complexo de saúde pública. É complexo porque tem uma morbilidade e uma mortalidade elevadas, é complexo porque é um sugadouro de recursos. Os valores estimados quando começámos a planear este projeto eram de 300 milhões ano em custos. Começámos a trabalhar com 12 hospitais do SNS que, depois, se converteram em 19, porque, entretanto, houve hospitais que fizeram agregações. Definimos 4 tipologias de intervenção e, no fim dos 3 anos de intervenção, a meta estabelecida, que era reduzir 50 % das infeções hospitalares adquiridas, foi atingida.

 

A meta foi atingida em todos os 19 hospitais?

Sim, foi atingida. Acho que isto foi uma contribuição que a Fundação Gulbenkian deu ao país, entregámos ao senhor Ministro uma metodologia e um conjunto de resultados e de profissionais habilitados. Caberá ao Governo continuar com esta tarefa, sobretudo quando fizemos um esforço adicional para formar profissionais do SNS nesta nova metodologia, nesta nova “cultura”.

 

E que sabe das intenções que o Governo tem de aplicar estes princípios a toda a rede hospitalar?

O senhor Secretário de Estado fez um despacho determinando que o Stop Infeção Hospitalar é incorporado no PPCIRA, que é o programa vertical da DGS. A sua coordenadora tem total empenho nessa tarefa. O senhor Ministro quis reforçar o compromisso do Governo, assinando um protocolo na sessão final, que foi uma celebração que contou com a presença do Presidente da República, e assim sendo, o Governo encontra-se comprometido no futuro do projeto.

 

Que papel tiveram os médicos nesse projeto?

Os médicos foram os agentes mais importantes, mais entusiastas e mais motivados. Para nós foi muito grato verificar o compromisso e o envolvimento. Tivemos duas sessões de aprendizagem por ano com 250 profissionais que acompanharam o projeto praticamente do início ao fim e que não faltaram. Criou-se, sobretudo, uma rede, uns a falarem com os outros e a transmitir aquilo que estavam a fazer de bem e a procurar os que estavam a fazer melhor que eles. Os conselhos de administração perceberam o benefício económico e clínico, porque morrem menos doentes e os internamentos são menos longos. Mas os grandes heróis deste projeto foram os profissionais, e quando digo profissionais falo em médicos, enfermeiros, farmacêuticos…

 

Identificaram alguma causa mais relevante para os números da infeção hospitalar?

As causas são sempre múltiplas, mas, sobretudo, os procedimentos têm de ser cumpridos, já existem há anos e estão todos publicados. Depois, é muito importante medir, porque o que não se mede não se muda. É absolutamente essencial ter um sistema que permita a cada momento monitorizar como é que estão as coisas em cada local e, antes de aguardar que haja campainhas de alarme centrais, as equipas locais constituídas devem ser capazes de resolver o problema ou contactarem com outras para ajudar a resolver. É necessário ter agrupamentos de boas práticas, mas também equipas muito motivadas para as cumprir e é necessário que essas equipas disponham de tempo para registar todos os indicadores de vigilância.

 

Como Presidente do CNECV, acha que o debate na sociedade portuguesa sobre a eutanásia tinha sido suficiente para chegar ao nível do Parlamento?

Respondo assim. Se acho que as questões estão esclarecidas? Não. Se o problema deve ser adiado ad infinitum? Também acho que não. Se o problema tem uma urgência como agora parecia ter? Também acho que não.

 

Numa eventual futura aprovação da despenalização da eutanásia, quais são os maiores riscos que vê?

Os riscos aconselham sempre prudência e há riscos muito óbvios. Isso levou a que muitos países tivessem posições mais prudentes, como foi o caso da Grã-Bretanha e da França. Numa comunidade de países como é a UE, onde se partilha tanta coisa, este não é um assunto que tenha evoluído com grande velocidade. E nos países onde o assunto já se colocou tem havido uma atitude prudencial, de boa sensatez.

 

Que pensa da posição conjunta que tomaram os cinco ex-bastonários vivos da Ordem dos Médicos e o atual?

Pareceu-me uma posição muito coerente. Os médicos foram treinados para defender a vida, é isso que têm feito ao longo dos tempos. O fim da vida sempre se passou muito na intimidade da relação médico doente, uma relação cúmplice, de grande compreensão do outro, de humanidade.

 

Passemos a outro tema. Foi Presidente da Comissão Nacional para os Centros de Referência, mas já saiu. Em que situação está o processo?

Não posso dizer que tenha sido uma experiência feliz. Tudo parece complicar-se, porque os critérios de rigor estabelecidos, começaram a ser um pouco aliviados. Há sempre muitas pressões e chegou a uma altura em que tínhamos centros de referência em que havia a perceção de que não cumpriam a totalidade das exigências. Os centros de referência não podem servir só para pôr placas à entrada da porta; têm de manter um standard de qualidade elevado. E que se faça uma transição suave dos doentes a tratar nas unidades que não são CR exclusivamente para os serviços CR.

 

Acha que isso colidiu, por exemplo, com os hospitais que deixavam de ser CR para determinado tipo de patologias e que no fundo sentiam com isso que perdiam algum espaço e alguma preponderância?

O que está a perguntar-me implica coragem política. Eu sempre encontrei no meu responsável, o Secretário de Estado Fernando Araújo, uma determinação firme e uma perspetiva muito solidária. Ele dizia-me: – “Quando for tirar alguma placa, eu vou consigo”. Agora, é preciso montar uma estrutura de avaliação da qualidade clínica, o que custa dinheiro e dá trabalho. É preciso ultrapassar as dificuldades que são próprias de todos os países, mas que em Portugal são particularmente sensíveis. Nós reprovámos alguns centros e sentimos alguma animosidade. Embora o regulamento diga exatamente quais são os critérios de candidatura, mesmo não os cumprindo as pessoas achavam que estariam em condições. Não têm Anatomia Patológica? “Compram” fora. Não têm eco e endoscopia? Mas “compram” fora. O problema é que esse outsourcing não faz um CR; um CR tem de treinar pessoas, tem de criar um corpo assistencial muito qualificado, tem de produzir conhecimento.

 

É professor universitário, presidente da comissão da A3ES que avaliou as faculdades de Medicina, a que resultados chegaram?

Verificámos que todas as faculdades de Medicina têm sobrecarga pedagógica, com um número de alunos muito superior àquele que o seu modelo pedagógico comporta; portanto, é um esforço imenso, uma dificuldade de coordenação de todas as atividades letivas e isto repercute-se na qualidade do ensino.

De resto, temos as faculdades novas, aquelas que foram criadas aqui há 15 anos, Minho e Beira Interior, a funcionarem muito bem. O Minho com um modelo pedagógico muito inovador, juventude do corpo docente, capacidade de interagir com alunos. A Beira Interior com dificuldades de recrutamento de docentes, ultrapassadas com grande empenho, porventura precisam de um modelo administrativo diferente para a fixação de recursos humanos.

Os cursos da Madeira e dos Açores foram criados por razões políticas que não mantêm justificação e não criaram um corpo docente próprio. Os objetivos eram tornar mais fácil o recrutamento de médicos para essas regiões e tornar mais barato o acesso a Medicina aos alunos dessas regiões, o que se não verifica. Nenhum dos pressupostos para a criação se cumpriu. Não houve evolução no sentido de serem partes fundacionais de escolas médicas, a relação com a escola mãe é remota, circunscrita à adoção dos programas e do calendário dos exames, nem sei se me lembro de algum novo doutor em Medicina por essas escolas.

 

E o Algarve?

O Algarve é um problema muito complexo, foi criado num contexto muito baseado numa personalidade que levou o projeto para a frente. O que se verifica é o seguinte: têm um modelo diferente das outras escolas, baseado no problem based learning, que é um modelo útil quando não se dispõe de quadro de docentes. Nada é novo, o modelo é importado “chave na mão” e traduzido. E depois as sessões tutoriais têm muito poucos médicos como dinamizadores, o que causa claras dificuldades aos alunos. E como não têm as “chamadas” cadeiras básicas, a maneira como se faz a reaprendizagem desses conteúdos ao longo dos 4 anos é também muito deficiente. O treino médico hospitalar é muito insuficiente e as queixas são várias e públicas. Não se nota nenhuma estabilidade nem nenhum crescimento sustentado, o que é, a meu ver, um problema. Houve, há 5 anos, uma comissão de avaliação externa que colocou um conjunto de exigências para que o curso continuasse e pode-se dizer que nenhuma dessas exigências foi cumprida. E nós não podemos pensar só na faculdade, temos de pensar nos alunos e, portanto, a segunda comissão internacional propôs mais um ano para cumprir aquilo que não tinha sido cumprido e acrescentou mais algumas exigências. Esse ano já passou. Houve um acordo inicial com a Faculdade de Ciências Médicas para apoio à lecionação, que não foi cumprido. Esse apoio mudou para a Faculdade de Medicina de Lisboa, mas também não está definido em que consiste. Portanto, é um problema difícil, que necessita de ponderação política.

 

E transformar o curso, com um modelo típico das outras faculdades?

Uma dificuldade em Portugal é a mobilidade dos docentes e, por isso, aquilo que no Algarve foi julgado fácil, o recrutamento de docentes clínicos, não o é. É importante que os médicos que se formam no Algarve se sintam tão aptos como os licenciados das outras faculdades, porque empenho eles têm.

 

A sua especialidade, Anatomia Patológica, é atrativa para os jovens médicos?

Nunca tive dificuldade em ter muitos internos, muito bons internos e bem classificados. É atrativa porque permite compreender as doenças, e isso, para muitas das pessoas que vão para Medicina, é muito atraente. Permite combinar linguagens modernas da medicina molecular, que hoje são absolutamente imprescindíveis e, portanto, isso também atrai gente nova muito boa. Quais são as dificuldades que eu vejo neste momento na especialidade? As dificuldades são, sobretudo, salariais e da qualidade dos locais de formação. A aprendizagem da anatomia patológica só se fazia nos hospitais públicos, agora já não, os salários dos internos são muito baixos e, quando acabam a sua especialidade, dificilmente têm lugar em locais que tenham realização académica. Esta é uma interpretação minha para uma futura baixa atração, mas, mesmo assim, a cobertura do País não está tão mal assim.

 

É Presidente da Mesa da Assembleia Regional do Sul. O que acha da OM hoje e do seu papel no futuro?

Este cargo para que me convidaram, a representação da voz dos médicos do Sul, é muito honroso. A OM tem de ser cada vez mais um garante da qualidade do exercício profissional, isso é essencial, tem de ser um veículo agregador dos médicos e do seu sentir. Acho que é necessário que o garante da qualidade passe por uma avaliação pós-graduada regular que seja nobilitante, na qual os médicos sintam que isso lhes dá um crédito público adicional.

 

Fala da recertificação?

A recertificação é importante em todas as profissões. Acho que a OM tem neste momento uma oportunidade boa para uma discussão que deve mobilizar muito a comunidade médica em geral, que é esta relação entre o SNS, que nós vemos cada vez mais a definhar, cada vez mais a atribuírem-lhe exigências sem contrapartida de recursos, e a medicina privada, que nós vemos cada vez mais a expandir-se, exigente e aparentemente próspera. Se a medicina não tem preço, tem um custo, e é uma área relevante de negócio. Nós vemos esta expansão a acontecer, Lisboa vai ter dentro de pouco tempo 1300 camas privadas e, portanto, esta relação, que vai implicar alguma predação de profissionais, precisava de algum reforço de pensamento e estratégia. Nós falamos muito que os sistemas são complementares, mas falta-nos definir é o terreno dessa complementaridade. Acho que a OM poderia ter aí um papel.



31 de julho de 2018

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