Mais de um milhão de portugueses continuam sem médico de família. Uma realidade tão absurda que permitiu mesmo a Ricardo Araújo Pereira dar-se ao luxo de sugerir soluções à ministra Marta Temido.
A incapacidade do Governo em garantir um médico de família a todos os portugueses é um dos muitos sintomas que caracterizam a grave doença que afeta o SNS. O diagnóstico está feito há mais de 20 anos.
Promessas, estudos, análises, projeções, planos e prazos têm vindo a acumular-se ao longo dos anos. Muito recentemente mais uma proposta, de mais um grupo de trabalho para os Cuidados de Saúde Primários, veio demonstrar que se continua a discutir o acessório deixando o essencial para trás.
E ao contrário do milagre das rosas, a formação de mais médicos e especialistas não permite atribuir mais médicos de família aos portugueses.
Nos últimos 10 anos saíram das faculdades de Medicina mais de 17.000 médicos. Por ano terminam a especialidade de Medicina Geral e Familiar cerca de 500. Dos quais só cerca de 350 ingressaram nos concursos abertos. E, após o ingresso, são vários os que abandonam o SNS nos anos subsequentes.
1.300.000 é o último balanço de portugueses sem médico de família, segundo dados oficiais da ACSS. Um número que envergonha o SNS. Um número que devia envergonhar todos os políticos que ao longo dos anos têm prometido resolver o problema.
O médico de família é a pedra basilar do SNS. Em número adequado, com os meios apropriados, devidamente motivados/recompensados e com uma correta distribuição, permitem uma Medicina ambulatória de proximidade e de qualidade.
Tratam muitos doentes, mas também promovem a saúde e estimulam a prevenção. Na sua ausência, todo o restante sistema se desmorona: congestionam-se a urgências e as consultas hospitalares, atrasam-se diagnósticos, agravam-se situações previsíveis e de mais fácil resolução, falham rastreios oncológicos e não só. E ficamos sem margem para responder a emergências sanitárias. A carga da doença aumenta e a qualidade de vida tão defendida por muitos deixa de ser uma realidade.
No mesmo momento que apregoa novas metas para o Plano Nacional de Saúde 2020-2030, o Governo dá-nos um banho de realidade com a assunção do seu fracasso no que se refere à política de cuidados primários.
É obrigatório assumir que o atual modelo está falido e precisa de novos objetivos, novas prioridades, novas condições. O atual sistema só serve para fazer sair médicos do SNS, com todas as implicações que daí advêm. Os portugueses nunca irão compreender este desinvestimento na sua saúde e irão eles próprios condicionar o aparecimento de novos modelos de prestação de cuidados.
A contínua saída de médicos do SNS irá transformar-se, pela certa, num catalisador de mais saídas.
Há que perceber que para fixar médicos no SNS há que lhes dar diferentes condições de trabalho. Retirando a carga de trabalho burocrático e administrativo que inundam o sue dia a dia. Criar-lhes melhores condições de trabalho, colocar a tecnologia ao seu dispor, como facilitadora e não como limitadora. Dar-lhes uma expectativa de carreira e reconhecer financeiramente o seu papel. Permitir-lhes diferentes formas de organização, mais flexíveis e menos burocratizadas.
Assumindo as diferenças geográficas e sociais. Aumentando o peso real das autarquias, das instituições sociais e particulares.
Precisamos de outros tipos de centro de saúde, que respondam aos desafios da Medicina futura. Que se aproximem dos cidadãos, que garantam o rápido e adequado acesso às solicitações na doença e em Saúde. Que se usem meios digitais para facilitar e agilizar.
E, acima de tudo, temos de recompensar o esforço e a dedicação dos milhares de médicos que nos últimos anos formámos com elevada qualidade. Não podemos defraudar as suas expectativas com a ausência de remuneração adequada e sem um projeto profissional de longo prazo assente nos pilares da Medicina: Ciência, Inovação e Humanismo, Autonomia e Responsabilidade, Ética e Profissionalismo.
Os próximos anos serão determinantes para o futuro da Medicina. Não podemos continuar a adiar decisões, sob múltiplos alibis, sob pena de perdermos um serviço equitativo e de qualidade.
A senhora ministra apresenta na Assembleia da República, esta semana, o seu orçamento e os caminhos que escolheu. Revitalizar e rejuvenescer o SNS ou aniquilá-lo são as opções que irão decorrer do atual OE. Esperamos para ver.
Temos os estudos, as projeções, e as reflexões necessários. Chegou o momento de decidir. Os médicos e os portugueses assim o entendem e assim o desejam.
Alexandre Valentim Lourenço
Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos