Entrevista a António José Barros Veloso

Entrevista a António José Barros Veloso

Um médico que sabe mais do que de Medicina

 

António José de Barros Veloso nasceu em Coimbra, em 1930. Em entrevista aborda a vida de médico – é especialista em Medicina Interna e Oncologia –, os Hospitais Civis de Lisboa, onde trabalhou praticamente sempre, a sua paixão pela azulejaria e pela História da Medicina. Onze livros no currículo. Reconhecido pianista de jazz que tocou com grandes músicos nacionais e internacionais, embora não saiba ler uma pauta, como refere.

 

Foi candidato a Bastonário, ainda se lembra dessa sua relação com a Ordem dos Médicos?

Lembro-me bem. Eram cinco candidatos e toda a gente me dizia que ia perder porque tinha dado uma entrevista na Revista da Ordem em que criticava a forma como funcionava a Clínica Geral.

 

Que críticas fazia?

Considerava que todo o sistema fora concebido por pessoas que não tinham formação clínica, pessoas muito competentes – estou a falar do Prof. Torres Pereira, do Prof. Nuno Grande –, mas que não eram clínicos e que desvalorizaram muito, quanto a mim, a formação clínica.

 

Quando diz clínico geral está a referir-se ao que hoje é a Medicina Geral e Familiar?

Sim, claro, mas nessa altura usávamos essa designação. De facto, valorizava-se muito a promoção da saúde, o acompanhamento dos utentes e dos seus familiares, a prevenção, mas desvalorizava-se muito aquilo que é o ADN dos internistas, saber observar doentes, saber diagnosticar e tratar, até um certo nível de dificuldade.

 

Mas acha que perdeu as eleições por isso?

Não sei, nem fiquei chateado, não tinha propriamente grande ambição de ganhar. Mas acho que levaram isso como uma desvalorização da clínica geral, mas não era, porque eu acho que os médicos de família têm uma função importantíssima.

 

Falemos agora do seu percurso nos então chamados Hospitais Civis de Lisboa…

A grande carreira nessa altura era a dos Hospitais Civis de Lisboa; todos os médicos tinham um respeito muito grande por essa carreira, muito difícil e exigente, com concursos e, sobretudo, com grande envolvimento na aprendizagem clínica e num ensino pós-graduado muito intenso. Era uma escola extraordinária, muito democrática, muito aberta, mas elitista. O concurso final da carreira durava dois meses, não era brincadeira.

 

E por que razão optou pela Medicina Interna?

Fui para a Medicina Interna talvez por uma questão de estrutura mental. Nessa altura o diagnóstico era muito relevante, havia reuniões clínicas e para mim era uma das coisas fundamentais: o diagnóstico.

 

Trabalhou sempre no Hospital dos Capuchos?

Tive uma curta passagem por S. José. Repare, ainda sobre a carreira nos Civis e a contribuição para o ensino pós-graduado; como diretor do serviço eu cheguei a organizar cursos que começavam em outubro e terminavam em junho do ano seguinte. Eram dezenas de sessões, duas, três ou mesmo cinco por mês, em que colaboravam as pessoas do serviço, do hospital todo e mesmo de fora. E estes cursos duraram 12 anos.

 

E como é que vê as sucessivas fraturas na Medicina Interna?

Esse fenómeno começou ainda eu não era médico e foi de tal maneira que havia uma sociedade de Medicina Interna que desapareceu, deixou de funcionar.

Mas a MI voltou agora a ter um papel relevante em vários sectores. Por exemplo, quando surgiram os hospitais privados, os internistas foram colocados em lugares chave. Esses hospitais perceberam rapidamente as vantagens disso.

 

No Hospital dos Capuchos também teve importância na área da Oncologia…

Bom, isso foi porque tinha pessoas a trabalhar no serviço que estavam interessadas na Oncologia e eu dei-lhes apoio, dei a face para que se criasse um serviço de Oncologia ligado ao tratamento dos tumores sólidos, porque havia já uma área de Oncologia das neoplasias sanguíneas: leucemias, linfomas, etc.

 

Nessas décadas de trabalho hospitalar, o que é que o impressionou mais? A evolução dos cuidados da própria medicina, da tecnologia…?

Os números da evolução estão aí, a mortalidade infantil, a esperança de vida, mas na verdade as tecnologias deram um salto muito grande sobretudo com os fundos europeus. Nós tínhamos muito pouca tecnologia, contudo, já tínhamos excelentes médicos, muito bem preparados do ponto de vista prático e teórico e havia uma rede de hospitais, alguns deles que vinham já dos anos 70, do III Plano de Fomento. Quando António Arnaut decidiu criar o Serviço Nacional de Saúde, assumiu uma atitude cívica e política muito corajosa, mas o importante foi que, na prática, foi capaz de tomar a decisão de dizer – OK, agora todos passam a ter direito a isto tudo.

 

Depois há uns outros ‘doutores Barros Veloso’, o dos livros, o que estuda a azulejaria e o músico de jazz. Vamos aos livros primeiro?

Eu comecei a escrever muito tarde, durante muito tempo não escrevia, acho que era por timidez. Foi o meu amigo Gomes Mota – muito próximo de Mário Soares, como sabe – que criou a revista Negócios e convidou várias pessoas, um arquiteto, um médico, um da tauromaquia… e escrevíamos todos os meses, foi já em 1980. Depois juntei uma série de textos desses para um primeiro livro, que é «Medicina, Arte e Ofício», e nunca mais parei de escrever.

Mais tarde, com a minha mulher, a Isabel, começámos a olhar com atenção para os azulejos de fachada e a certa altura saímos para a rua a fotografar e fizemos um álbum. Assim nasceu um livro sobre azulejos de fachada. Esse livro ainda hoje é considerado, pelas pessoas que estão ligadas à História da Arte e ao azulejo, como um livro pioneiro.

 

Quantos livros fez sobre azulejos?

De azulejaria são 4 livros e um catálogo de exposição mas, ao todo, já escrevi 11 livros.

 

E o livro sobre o Caramulo é o mais especial para si?

O meu pai trabalhou toda a vida lá, foi diretor do laboratório de análises da Estância. Eu vivi lá na infância e tinha um grande amor àquilo.

Reuni o material todo que tinha, fotos, textos, revistas, documentos. As fotos que usei são muito fortes, mostram a evolução daquela gente, em especial os médicos, desde muito novos até envelhecerem, e depois há a ligação política ao Salazar. Foi uma iniciativa da qual sinto grande satisfação.

 

A História da Medicina, com 4 dezenas de autores, foi uma grande aventura?

Foi uma grande experiência pessoal. Tinha guardado muitos documentos históricos, ensaios sobre Medicina e sou testemunha de parte daquilo que se passou. Comecei a perceber que a grande maioria das pessoas, e até dos médicos, não fazia ideia do que é a nossa história da Medicina do séc. XX, que foi de uma riqueza extraordinária.

Comecei a discutir o livro com o Prof. Henrique Leitão e inicialmente ele não estava muito entusiasmado com a ideia. Eu sabia perfeitamente o que é que queria, o problema é que não podia escrever um livro daqueles, sozinho, na idade em que estava. E então desafiei o Damas Mora para se juntar a este projecto.

 

E, finalmente, ainda há o jazz, nesse meio chamam-lhe “o Doutor”. Começou a tocar piano por causa do jazz ou descobriu o jazz depois de tocar piano?

Comecei a tocar sozinho. A minha mãe era uma pianista extraordinária, ainda hoje, quando ouço qualquer concertista começo a lembrar-me de como é que ela tocava aquilo e o andamento que utilizava em cada peça, tinha uma técnica fabulosa e interpretava muito bem, mas nunca me ensinou. Eu nunca aprendi música, não sei ler uma pauta, é uma vergonha. Faço tudo de ouvido.

 

Mas já tocou com figuras das mais relevantes do jazz…

A última vez que toquei no Hot Club, no dia 7 de junho, foi com o Jeffery Davis, com o Ricardo Toscano e com o António Serrano, um espanhol que é uma coisa do outro mundo a tocar harmónica. Chamaram-me para tocar com eles e eu partilhei o palco com três dos maiores músicos de jazz da Península. Foi uma festa fantástica!

Um pormenor: também já acompanhei o Salvador Sobral mas, é claro, antes do Festival da Canção...

 

Como é que avalia o mundo actual e as novas gerações?

Para uma pessoa da minha idade, é estranho olhar à volta e ver como tudo é diferente. Muitos dos meus amigos irritam-se e revoltam-se como se fossem donos da História e dos “verdadeiros” valores. Por mim acho que a História está a rolar e diverte-me estar cá a assistir. Mas às vezes sinto-me como se fosse um antropólogo que tivesse chegado a uma tribo da Amazónia: então observo e tomo notas.

3 de abril de 2018

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