Uma vida nova

Uma vida nova

No mesmo dia em que a humanidade alcançava a superfície lunar pela primeira vez, era realizado o primeiro transplante em Portugal. A 20 de julho de 1969, o cirurgião Linhares Furtado realizava em Coimbra um transplante renal de dador vivo entre irmãos.

Como é apanágio da Ciência e da Medicina, a história da transplantação em Portugal foi marcada por avanços e recuos. Seria ainda necessário aguardar até 1980 para que um novo transplante renal fosse realizado. O mesmo cirurgião, em Coimbra, e o cirurgião João Pena, em Lisboa, implantaram com sucesso, em dois recetores, os rins provenientes do mesmo dador falecido. Nesse ano já existia legislação visando a utilização de órgãos de dadores falecidos. Este foi o início de uma nova era da Medicina e da organização dos cuidados de saúde em Portugal, que deve ser motivo de orgulho.

A transplantação de órgãos permite aumentar não só a esperança média de vida, como a qualidade de vida dos doentes elegíveis para transplantação. Ao longo dos anos, Portugal tem ocupado sistematicamente lugares cimeiros a nível mundial quanto ao número de órgãos transplantados por milhão de habitantes, nomeadamente fígado, pâncreas e rim. De salientar o papel de todos os envolvidos, incluindo não apenas os médicos e restantes profissionais de saúde, mas também as forças de segurança que realizam o transporte de órgãos e o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) que garante e regula a atividade da Medicina transfusional e da transplantação a nível nacional.

Recentemente, foi publicado na prestigiada revista científica britânica The Lancet Public Health um artigo que avaliou o efeito da pandemia por SARS-CoV-2 na atividade de transplantação em 22 países, incluindo Portugal. Como era expectável, verificou-se uma redução da atividade de transplantação neste período. Em Portugal, o decréscimo foi de 24,19%, superior à média global de 15,92%. Este resultado, embora nos tenha posicionado melhor do que países como o Japão ou o Reino Unido, com quebras de 66,71% e 31,31%, respetivamente, coloca-nos pior do que a nossa vizinha Espanha com um decréscimo de 24,02% ou a Suíça com 1,34%.

Em 2020, a transplantação de órgãos diminuiu principalmente no segundo e no quarto trimestres. O transplante de rim foi o mais afetado, seguido da transplantação de pulmão, fígado e coração. O rim foi o órgão cujo número de transplantes mais diminuiu, provavelmente por existir a possibilidade de adiar este procedimento enquanto o recetor se mantém em hemodiálise ou diálise peritoneal a aguardar a cirurgia. De acordo com o IPST, foram transplantados 711 órgãos em 2020, correspondendo a menos 168 do que os 879 órgãos transplantados em 2019. Como já mencionado, a maior redução ocorreu no transplante renal, de 514 para 393, seguida do fígado, de 240 para 193. De destacar que a redução foi particularmente notória na transplantação de dador vivo, a qual diminuiu cerca de 50%.

No entanto, de acordo com o registo internacional de doação e transplantação de órgãos, em 2020, Portugal posicionou-se em quarto lugar quanto ao número de dadores falecidos por milhão de habitantes a nível mundial. De facto, apesar do decréscimo da transplantação durante a pandemia, esta redução em Portugal não foi tão acentuada quanto noutros países. Tal evidencia o esforço louvável das equipas de transplantação para que a atividade se mantivesse.

Apesar de positivos, estes dados poderão não ser suficientemente animadores para quem continua em lista de espera, aguardando que o telefone toque a informar que surgiu um órgão disponível. De facto, para o médico que faz a chamada existirão poucos momentos tão comoventes quanto aquele em que ouve o silêncio quase solene de quem atende e sente a felicidade praticamente palpável de quem tanto aguardou por essa notícia.

No final de 2020, existiam cerca de 2000 pessoas em lista de espera por rim, 120 por fígado, 60 por pulmão, 30 por coração e 30 por pâncreas. Ao longo dos anos têm sido implementadas várias inovações em Portugal no sentido de reduzir a lista de espera. É disso um bom exemplo o programa de doação renal cruzada, dirigido a doentes com incompatibilidade imunológica. Este programa já incluiu pares de dadores-recetores em Portugal e no estrangeiro. Baseia-se no intercâmbio de rins de dadores vivos entre dois ou mais pares que não são compatíveis entre si, permitindo transplantar doentes que, de outro modo, teriam de continuar a aguardar por um órgão de um dador compatível.

Os órgãos transplantados em Portugal provêm sobretudo de dadores falecidos. Embora o número de transplantes provenientes de dador vivo tenha vindo a aumentar, é ainda inferior ao verificado noutros países. Tal poderá dever-se a vários motivos, entre os quais aspetos culturais. Se por um lado os potenciais recetores poderão não se sentir confortáveis em falar sobre a doação com familiares e amigos, por outro, é natural que exista algum receio por parte dos dadores relativamente ao procedimento e consequências a médio e longo prazo. Na realidade, nem todas as pessoas podem ser dadoras em vida. Para além da compatibilidade, existem alguns requisitos em relação ao estado de saúde do dador que devem ser acautelados. A doação apenas é realizada caso seja seguro para o dador e o órgão seja de boa qualidade. Após o procedimento, os dadores referem frequentemente sentir-se realizadas por este ato altruísta.

Nos próximos meses continuaremos a assistir ao esforço das equipas de transplantação para recuperar a atividade nesta área, mitigando o impacto da pandemia. Serão de louvar medidas que sensibilizem a população a nível nacional para a doação de órgãos em vida e que acelerem a avaliação inicial do recetor, bem como a realização de eventuais exames e tratamentos necessários para a sua inclusão em lista de espera.

Desde o início, as equipas de colheita e transplantação mostraram a sua qualidade trabalhando para que o resultado seja superior à soma das partes. As condições existem para que a história da transplantação em Portugal continue a ser um sucesso, mas é necessário que todos os elos da cadeia se mantenham coesos, sejam incentivados e continuem a ser reconhecidos. O objetivo final será sempre garantir um órgão a quem necessita e diminuir o tempo de espera, trazendo esperança a quem aguarda por uma vida nova.

Miguel Bigotte Vieira

Nefrologista

Membro do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos

15 de setembro de 2021

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