O pior cego é o que não quer ver
No mês passado aqui falei sobre o Verão de 2019. Mas há que ir mais longe.
Ordem e Sindicatos têm denunciado sistematicamente os problemas ocorridos e avisado dos problemas futuros. Mas há que ir mais longe.
Há que perceber que o Mundo mudou.
Há que perceber que a Sociedade Portuguesa mudou.
Há que perceber que a Saúde em Portugal também mudou.
Em 1961 a Ordem dos Médicos publicou o célebre Relatório das Carreiras Médicas, criando um novo modelo de enquadramento da carreira médica e de organização da mesma. Perante uma situação insustentável para a saúde em Portugal e para a dignidade dos médicos foi criada uma alternativa que se tem mantido como um referencial há quase 60 anos.
Durante décadas, e desde que foi criado o SNS, foi o Estado que ditou as regras e estabeleceu o modelo de organização dos serviços de saúde em Portugal. Apesar da tradição liberal da organização dos serviços de saúde existente até 1971, o modelo de predomínio do setor público veio a impor-se e reforçar-se com a aprovação da Lei de Bases da Saúde e com a criação do SNS.
Passaram-se décadas. E o mundo mudou. E a mudança que ocorreu nos últimos anos é enorme.
O primeiro sinal de que algo se passava é bem ilustrado pelo facto de que o setor da saúde privada e social se desenvolveu durante o maior momento de crise da nossa história recente – o período da Troika. Quando tudo indicava que o setor não público entraria em recessão, pela diminuição de poder económico dos portugueses, aconteceu exatamente o contrário. A crise instalou-se e o setor desenvolveu-se.
E desde essa data que os setores privado e social não pararam de crescer.
E desde essa data que o setor público não parou de ter problemas.
O limite entre o alarmismo desnecessário e a necessidade de nos adaptarmos a uma nova realidade corre o risco de se sobrepor desnecessariamente.
O significado das carreiras médicas mudou.
O significado do que se entende por estabilidade profissional mudou.
A paixão pelo Serviço de Urgência transformou-se, para muitos, num pesadelo.
A motivação pela formação modificou-se como se modificou a formação.
Os prazos dos concursos médicos e o seu significado.
A indefinição sistemática do setor público em contratar ou não e em deixar arrastar processos anteriormente simples, passou a ser uma constante.
A limitação ao investimento e à entrada da inovação – e não da novidade – atingiu valores insultuosos.
As Universidades deixaram de ter capacidade de contratar e de crescer, enquanto o número de alunos não para de crescer. Contratam-se assistentes a 100 €…
As limitações em recursos humanos e o desaparecimento dos escalões mais diferenciados do SNS têm levado a que a diferenciação e capacidade de formação se tenha vindo a degradar de forma permanente.
Os valores do bem-estar, da qualidade de vida e da família passaram a ocupar um lugar relevante nos médicos mais jovens o que os levam a formular novas opções e de enquadramento no mercado da saúde.
Tudo mudou e vai continuar a mudar. Cada vez mais rápido.
Hoje é o setor privado e social que estão a ditar as regras do jogo. Criando uma realidade que pode matar o próprio sistema e o desígnio do que é Ser Médico.
Há que perceber que é necessário mudar. E desenhar a mudança do Sistema e do SNS para bem de todos. Dos profissionais e dos doentes.
Não tenho dúvidas é que é necessário desenhar um novo sistema de saúde. Olhando para o mundo aí fora. Um sistema desenhado para responder às necessidades dos nossos doentes e dos nossos profissionais. Um sistema desenhado olhando para fora e não para os umbigos de alguns políticos ou de alguns pretensos ideólogos da saúde.
O futuro está aí e é bom que o percebamos.