CRS Sul lança alerta sobre a formação

CRS Sul lança alerta sobre a formação

 

Adiar a data do exame pode ser opção para internos a terminar a especialidade. ACSS admite “medidas excepcionais”

Ana Maia

Ordem dos Médicos, coordenadores de internatos e comissões de internos estão preocupados com a formação: houve estágios adiados, programas adaptados e ainda a incerteza sobre se se mantém ou não a data normal de exame para quem termina a especialidade no Ænal do ano. A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) diz que “estão a ser estudadas”, pela Ordem dos Médicos, Conselho Nacional do Internato Médico e Ministério da Saúde, “medidas excepcionais e transitórias que permitam a adequação dos prazos previstos” para que os jovens médicos do último ano da formação especializada “não sejam prejudicados”.
“Temos centenas de estágios que foram desmarcados e há dificuldades em remarcar muitos deles. Por exemplo, no bloco operatório, posso ter dois internos de cada vez a assistir numa cirurgia cardíaca. Se o estágio foi desmarcado, no próximo, não poderei ter quatro internos ao mesmo tempo. Há internos de ginecologia que não operam desde Março”, aponta Alexandre Valentim Lourenço, presidente da secção regional do Sul da Ordem dos Médicos.
“Estamos a comprometer, por ausência de decisão, a formação dos futuros médicos”, afirma, salientando que “o Conselho Nacional do
Internato Médico, com o apoio da Ordem dos Médicos, emitiu há um mês um parecer para que se possa alargar a data do exame para Maio”, em vez de ser entre Fevereiro / Março como habitualmente. O risco é que os jovens médicos “cheguem ao fim da especialidade e não sejam tão autónomos como deveriam”. Refere que os internos no penúltimo ano de formação poderão ser os que mais problemas terão de enfrentar devido a dificuldades futuras na marcação
de estágios à medida que mais formandos avançam de ano. Quanto aos que terminam a especialidade, a falta de definição da data de exame cria “uma enorme ansiedade”.
Alexandre Valentim Lourenço lamenta ainda que muitos internos da formação geral continuem desviados “para funções gerais e administrativas” ou alocados praticamente em exclusivo à saúde pública na realização de inquéritos epidemiológicos e contactos telefónicos. Dá o exemplo dos Açores, “onde estão a fazer pré-triagem de covid numa tenda à porta do hospital” e não fizeram estágios em Medicina Geral e Familiar, Pediatria e Medicina Interna.
A ACSS explica que “estão a ser estudadas pela Ordem dos Médicos, pelo Conselho Nacional do Internato Médico e pelo Ministério da Saúde, com o acompanhamento da ACSS, medidas excepcionais e transitórias que permitam considerar a actividade clínica realizada pelos mesmos [médicos internos da formação geral] no contexto das medidas necessárias para enfrentar a covid19, para efeitos de realização dos blocos formativos previstos”.

“Mudança muito grande”

Inês Urmal, interna do terceiro ano de Medicina Interna e membro da Comissão de Internos do Centro Hospitalar Lisboa Central, fala de “uma mudança muito grande a todos os níveis nestes últimos meses”. “Houve estágios cancelados, outros adiados sem data de remarcação. Todos os internos viram a formação comprometida”, diz, apesar de a pandemia também lhes dar muita aprendizagem como a de união e organização, que levou cerca de 300 internos a juntarem-se nas colheitas e nas enfermarias covid. A jovem médica fala “numa assimetria” provocada pela pandemia, com alguns internos com formação reduzida e outros a acumular trabalho diário no combate ao novo vírus em áreas como medicina interna e infecciologia.
E não há grande perspectiva que a situação do país possa melhorar nos próximos tempos. “Não sabemos como vai ser feita a reprogramação do internato. Nas comissões de internos, tem sido um assunto altamente debatido”, diz, referindo-se às diferentes opiniões dos internos entre adiar ou não as épocas de exames e estender ou não a formação.
Também João Castro Nunes é interno do terceiro ano, mas neste caso de anestesiologia no IPO de Lisboa. Elemento da Comissão de Internos, salienta que esta unidade tem a particularidade de ser covid free e, por isso, a pandemia acabou por ter efeito de outra forma. “Fazem-se estágios noutros hospitais para se ter uma abordagem mais vasta e houve hospitais mais afectados pela pandemia. Tem-se tentado conciliar vagas para estágios e só com boa vontade se tem conseguido”, explica. No seu caso, já teve um estágio que acabou adiado e teve de regressar à unidade
onde faz formação.
Por outro lado, tem visto colegas serem mais requisitados para lidar com a covid, como a área dos rastreios. “Tem havido uma perturbação muito grande na formação.” Preocupa-o “não haver uma abordagem comum de área para área e de hospital para hospital”. “Não sabemos o que nos espera, o que gera muita ansiedade. Houve redução de actividade, menos doentes, menor disponibilidade dos superiores que estão preocupados com a gestão de outros problemas”, acrescenta.

Efeito dominó

Todos os anos, o SNS recebe internos que vão iniciar formação e que se juntam aos que já estão a fazer a especialidade, que pode durar quatro a seis anos, dependendo da área. Cada especialidade tem vários estágios em diversas áreas e hospitais, que não só aquele onde o jovem médico está a ser formado. A duração de cada um dos estágios também é variável, sendo uns opcionais e outros obrigatórios, havendo tempos mínimos e máximos a cumprir. Tudo isso tem de ser conjugado e, com as capacidades formativas já no máximo, qualquer sobreposição de internos pode funcionar como um choque em cadeia que os coordenadores de internato têm de gerir.
O director do internato do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa dá um exemplo do impacto que a pandemia teve. “No hospital de dia, posso ter até 20 doentes e quatro internos — este é um estágio de seis meses obrigatório — e, neste momento, tenho seis doentes. Como posso formar internos?”, questiona o psiquiatra Rui Durval, afirmando que “é preciso ter coragem para avançar com os prazos da formação”. “Este atraso na formação, que se estende em dominó, vai complicar as coisas.”
“Não podemos abdicar dos estágios obrigatórios”, afirma João Estrada, director de internato em Lisboa e Vale do Tejo. O médico acredita que haverá um consenso no adiamento do prazo do exame, dando mais dois meses aos jovens médicos para completarem algum dos estágios em que se possam sentir mais frágeis. “A covid condicionou negativamente a formação, mas não acho que de uma forma que coloque a qualidade em causa”, considera João Estrada, lembrando que ao longo da formação existem várias avaliações intercalares nas quais o interno pode não passar. Ou seja, os médicos formados “estarão aptos” para tratar os doentes.
Quanto aos internos da formação geral, João Estrada refere que “foram cumpridos os mínimos” do programa e que se “fizeram coisas fabulosas do ponto de vista da proximidade com os doentes”. Esta foi uma das coisas que a pandemia trouxe, “uma experiência única” de humanização.


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16 de novembro de 2020

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