Entrevista a Catarina Palma dos Reis

Entrevista a Catarina Palma dos Reis

Tempo para a investigação clínica devia ser protegido

 

Interna de Ginecologia-Obstetrícia na Maternidade Alfredo da Costa apresentou ao Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central uma proposta de investigação clínica sobre a restrição de crescimento fetal. Em entrevista ao Medi.com, Catarina Palma dos Reis defende tempo protegido para a investigação clínica e destaca a ausência de meios de apoio a essa atividade na maioria das unidades de saúde. É uma otimista e considera, por isso, que o SNS se vai manter como um serviço de excelência, com uma formação de qualidade.

 

Medi.com – Que projeto é este que mereceu o Prémio MSD de Investigação em Saúde?

Catarina Palma dos Reis – O nosso projeto consistiu no desenho de um protocolo de investigação sobre a restrição de crescimento fetal de etiologia placentar, uma patologia em que o feto não atinge todo o seu potencial genético de crescimento no contexto de uma insuficiência feto-placentar. A prevalência destes casos tem vindo a aumentar e afeta cerca de 10% de toda a população a nível mundial. Esta é uma importante causa de morbimortalidade: representa até 10% de todos os custos em Saúde com crianças e estima-se que até 40% de todos os partos pré-termo iatrogénicos possam ser devidos à restrição de crescimento fetal. Para além disso, o baixo peso ao nascer é ainda a segunda causa de mortalidade perinatal em todo o mundo.

 

MC – Apesar de ser um problema tão vasto não tem terapêutica… por que há falta de investigação nesta área?

CPR – É uma área em desenvolvimento, tem havido cada vez mais investigação sobre o tópico. Mas foi difícil criar critérios para o diagnóstico de restrição de crescimento fetal, porque esta não era uma definição consensual. Nos últimos anos, tem sido gerado um maior consenso acerca desta patologia e tem sido desenvolvida investigação na área da vigilância e terapêutica destas gestações.

 

MC – E o vosso grupo também vai trabalhar em possíveis terapêuticas, certo?

CPR – Sim, vamos focar-nos na utilização da heparina no contexto da restrição de crescimento fetal, por existirem alguns estudos prévios que nos fazem pensar que possa ser útil nestas gestações.

 

 

 

MC – Se tiver boas conclusões desta prática é possível no final do ensaio uma rápida repercussão prática?

CPR – Se o estudo demonstrar que a heparina tem eficácia – claro que é necessário sempre a comparação com outros ensaios clínicos e com amostras maiores – pode ser um primeiro passo para a aprovação de um tratamento para esta patologia.

 

MC – As grávidas que propõem no protocolo serão todas da MAC?

CPR – Numa primeira fase é isso que propomos, sim.

 

MC – Que importância teve a investigação na sua formação? Acha que devia ter na de todos?

CPR – Um clínico por definição é alguém que gosta de investigar, que gosta de se focar no doente e procurar respostas. De forma geral, as pessoas que gostam de Medicina são pessoas curiosas, criativas e com gosto pela descoberta. Todas estas características são importantes na investigação. Acho que os clínicos têm um skills set particular na investigação, não só pelos seus conhecimentos teóricos, mas também porque estão mais perto do doente. São eles que se apercebem mais de quais são os problemas na prática e quais é que poderão ser as soluções.

Apesar de algumas pessoas defenderem que os investigadores deveriam só investigar e os clínicos deveriam só tratar, eu acredito que a conciliação destas duas atividades traz grandes mais-valias.

 

MC – Até porque a investigação clínica tem mesmo essa particularidade, de ser clínica…

CPR – Exatamente. Por outro lado, sinto que também traz mais-valias importantes para a prática clínica. Isto é, algumas das ferramentas desenvolvidas na investigação como questionar, avaliar criticamente a literatura, compreender quais os fármacos que são aprovados e porquê, com que indicação, baseados em que estudos, também podem ser transportadas para a clínica e úteis neste contexto.

 

MC – Mas tem que ser por si, ou há oportunidades disponíveis para os internos?

CPR – Eu tive a sorte e oportunidade de participar no programa Harvard Clinical Scholars Research Program, uma pós-graduação com uma duração de dois anos patrocinada pela FCT, que nos dá excelentes competências para a investigação clínica.

Quando acabei o Mestrado em Medicina tinha muito poucos conhecimentos sobre investigação, não conseguiria fazer praticamente nada autonomamente. Depois do programa, embora ainda tenha muito para aprender, fiquei com conhecimentos e competências que me permitiram desenvolver alguma investigação. Foi um enorme apoio.

 

MC – Mas aqui em Portugal há incentivos para fazer investigação durante o internato?

CPR – Na maioria dos centros são escassas as estruturas formalmente montadas para apoiar a investigação clínica de alto desempenho. O internato médico varia muito de acordo com a especialidade e com os locais onde se realiza, mas, pelo que conheço, poucas unidades terão programas formais de formação em metodologia científica ou incentivo à investigação.

 

MC – E o que acha que se podia fazer?

CPR – Há várias coisas a melhorar. Poderia ser útil acrescentar um componente de formação básica em investigação, eventualmente opcional, durante o internato de formação geral ou de formação específica.

Acho que algo importantíssimo seria ter tempo protegido para investigação. Isto é cada vez mais difícil com o aumento da pressão assistencial e a investigação acaba por ter que se fazer nos tempos livres e conduzida com qualidade subótima.

 

MC – Mas tem dificuldade em obter aquilo de que precisa para a investigação?

CPR – Estou ainda a começar. O que era mais necessário, o financiamento, foi bastante difícil de obter; com uma bolsa do fundo de financiamento de investigação do CHULC e com o Prémio MSD de Investigação em Saúde conseguimos viabilizar o projeto, mas acho que o financiamento nacional para investigação é claramente insuficiente.

Em relação ao apoio entre pares, felizmente trabalho numa instituição onde me sinto muito encorajada e apoiada e tenho mentores que me têm ajudado a superar todos os obstáculos. Mas sei que há colegas que não têm esta experiência. Colegas que gostam de investigação, mas que se sentem rotulados nos seus serviços como piores clínicos ou menos capazes tecnicamente por se dedicarem também a esta área. Atribuir tempo dedicado fará falta a quase todos, mas esta decisão teria de vir de cima, porque com a falta de capital humano nos serviços e a procura elevada destes é muito difícil a dispensa de internos ou especialistas para a investigação.

 

MC – Propôs esta investigação primeiro internamente?

CPR – Sim, antes de concorrermos a qualquer financiamento tivemos de ter a autorização do Conselho de Administração do CHULC, como garantia de que conseguiríamos levar a cabo o estudo. O Centro de Investigação do CHULC orientou-nos em todo o processo de submissão e de apresentação do protocolo do estudo, o que foi uma ajuda importante.

 

MC – E quem é a equipa do estudo?

CPR – O projeto foi desenhado por mim, sob a orientação da Prof.ª Fátima Serrano e da Dra. Ana Teresa Martins. O restante grupo que trabalha na restrição de crescimento fetal, o Dr. Bruno Carrilho, a Dra. Natacha Oliveira e a Dra. Tânia Meneses, deram também um grande contributo. A Prof.ª Cristina Almeida, que é a nossa administradora hospitalar, tem sido imprescindível. Profissionais da Farmácia, Anatomia Patológica e Pediatria vão ser também essenciais para o projeto. Para o estudo propriamente dito teremos que ter uma equipa bastante maior e sobretudo multidisciplinar.

 

MC – E nessas pontes com os profissionais de outras áreas a articulação é difícil?

CPR – Não acho que seja difícil. Há enfermeiros, farmacêuticos, administrativos, fisioterapeutas e nutricionistas, entre outros, que têm um grande interesse em investigação e são muito competentes e entusiastas. Um estudo destes tem que ser multidisciplinar, sem estes apoios não será exequível.

 

MC – Mas o problema é que as pessoas não têm qualquer obrigação de colaborar…

CPR – Claro, isto é tudo por entusiasmo e “amor à camisola”, as pessoas não são remuneradas, não temos fundos suficientes para isso. Mais, têm que incluir esta atividade no meio de um dia cheio de outras obrigações, ou ficar para lá do seu tempo normal de trabalho, o que é louvável. São estas pessoas que me dão um enorme orgulho no SNS e constroem a investigação clínica em Portugal.

 

MC – Regressando aos médicos. Nos currículos de formação especializada não existe qualquer incentivo à investigação?

CPR – Depende das especialidades. Agora já começa a haver alguns. Por exemplo, na minha especialidade temos que apresentar um certo número de pósteres e de publicar artigos e temos uma cotação para programas de investigação. Na maioria das especialidades começa a haver alguma valorização da investigação, mas acho que era importante apostar também na formação.

 

 

 

MC – E como consegue equilibrar a atividade assistencial obrigatória com este trabalho?

CPR – A maioria do trabalho é feita quando vou para casa. Às vezes há coisas que só consigo resolver aqui no CHULC e tento marcá-las para dias sem atividade laboral, como folgas ou saídas de banco. Quando não é possível tento no meio da atividade diária, a correr, ter uma reunião ou ir falar com a farmácia ou com a administração.

 

MC – E os hospitais, em geral, podiam fazer alguma coisa para facilitar a investigação?

CPR – Eu compreendo que os hospitais tenham dificuldade em encaixar investigação clínica na atividade assistencial quando a vertente básica de assistência à população está no limite. O tempo protegido e financiamento para investigação teriam de partir de decisões políticas claras baseadas na aposta no SNS de qualidade com um número adequado de profissionais contratados.

 

MC – E quando acabar isto? Tem projetos nesta área?

CPR – Acho que este estudo me vai dar muito trabalho ainda! Neste momento queremos iniciar o recrutamento, é nisso que estou focada e em acabar o internato, claro.

 

MC – Este ensaio significa também que se quer dedicar particularmente a esta área?

CPR – Ainda é difícil saber. Tenho mais três anos de internato e a Ginecologia-Obstetrícia é uma especialidade muito complexa, com muitas áreas desafiantes e ainda não passei por todas.

 

MC – Pondera também alguma carreira académica?

CPR – Eventualmente, no futuro. Não me veria a fazer apenas investigação, mas é uma área de que gosto muito e, portanto, gostava de a conseguir aliar à clínica.

 

MC – Há quem pense que aos médicos mais jovens falta um certo espírito de sacrifício e de dedicação. Tendo em vista tudo isto que faz, o que pensa disto?

CPR – Bom, depende muito das pessoas, mas não é isso que vejo diariamente. Acho que algumas coisas têm mudado, e bem, para segurança dos doentes. Dantes, por exemplo, faziam-se 24 horas de banco e a seguir ia-se operar e isso era valorizado como “espírito de sacrifício”. Hoje em dia, felizmente, isto já não é comum e não é bom para ninguém, principalmente para o doente.

Não acho que seja isso que defina a dedicação. A maioria dos internos e especialistas veste muito a camisola, e acredito que é isso que mantém o SNS de pé. As horas extra de urgência sistemáticas, os dias em que ficamos extra-horário porque há trabalho a fazer. Acho que essa dedicação e sacrifício se mantêm. Felizmente criou-se alguma regulamentação que impede excessos.

 

MC – A falta de profissionais tem sido o centro de muita contestação no SNS. Como tem sido o seu internato? Sentiu isso?

CPR – Os internatos são mais prejudicados quanto mais especialistas saem do SNS. Não é só o especialista que sai, é tudo aquilo que se perde das suas qualidades e de tudo o que ele deixa de ensinar aos internos que o seguem. Se nós perdermos os especialistas mais diferenciados e com gosto de ensinar, ficamos com um enorme défice no ensino e na qualidade da Medicina pública do futuro. Se houver esta saída contínua de especialistas o internato ficará muito prejudicado, porque não há quem ensine e a carga de trabalho aumenta em cada pessoa, o que torna mais difícil ainda ter tempo puramente para aprender.

 

MC – E no seu internato, isso aconteceu?

CPR – Nos números cirúrgicos sentimos muito isso, temos um enorme défice de anestesistas com consequente redução do número de blocos operatórios disponíveis.

 

MC – O que lhe diz nesta idade, e no início da carreira, a sigla SNS?

CPR – Eu acredito incondicionalmente no SNS – que qualquer Estado tem que ter um Serviço Nacional de Saúde de qualidade, capaz de responder à população. O SNS continua a ser a grande escola de formação de profissionais e é um sítio onde se prestam cuidados de saúde de excelência em várias áreas. Da minha ainda curta experiência, sinto que o investimento nesta área é claramente insuficiente e que muitos profissionais se sentem mal remunerados, desmotivados, cansados e com trabalho excessivo. Paradoxalmente, é também no SNS que vejo pessoas resilientes: dedicadas, esforçadas e criativas a dar todos os dias o melhor que conseguem com os enormes défices que lhes são impostos. Espero que ainda estejamos a tempo de implementar medidas que permitam a sustentabilidade financeira e particularmente de talento do SNS.


Consulte a versão online do Medi.com aqui.





Consulte a edição online do Medi.com aqui.

12 de novembro de 2019

Documentos para download

Categorias

Categorias

Arquivo de Notícias

Arquivo