Entrevista a Ricardo Mexia

Entrevista a Ricardo Mexia

A Saúde Pública tem sido o parente pobre do SNS

 

Ricardo Mexia é o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. Ao Medi.com falou sobre os problemas da especialidade e os que os especialistas enfrentam no seu trabalho. Acusa o poder político de desvalorizar a atividade, ignorando a importância da prevenção, mesmo nos seus aspetos de poupança mais relevantes.

 

MC – Sabe quantos médicos de Saúde Pública existem no país?

RM – No colégio da especialidade são mais de 400, mas o que acontece na Saúde Pública é que há vários colegas com duplas especialidades. Sabemos que a maior parte de nós trabalha no contexto das Unidades de Saúde Pública e nos Agrupamentos de Centros de Saúde, onde há muitas insuficiências.

O que está nas normas é que deve haver um médico de Saúde Pública por cada vinte e cinco mil habitantes. Se nós arredondarmos para 10 milhões, seriam 400 médicos.

 

MC – Devíamos ter 400 a trabalhar no SNS, mas não é esse o número que temos neste momento?

RM – Não consigo precisar o número, mas seguramente que é bastante abaixo desse. Há também assimetrias regionais; há regiões do país, designadamente aqui em Lisboa, no Alentejo e no Algarve, com grande défice, já para não falar das regiões autónomas, onde o cenário é muito preocupante. Isto é fruto de várias décadas em que tínhamos poucos ingressos na especialidade e taxas de desistência elevadas...

 

MC – Mas a que se devia tanta vaga por preencher?

RM – Agora a realidade já é diferente. Não só a pressão do número de candidatos aumentou muito e todas as vagas são preenchidas, mas também porque passámos a recrutar cada vez mais candidatos que escolhem Saúde Pública como primeira opção.

Mas há vários fatores que, de alguma maneira, influenciaram esse cenário. Por exemplo, toda a gente sabe o que faz um cardiologista ou um pneumologista ou até um especialista em cirurgia geral, mas na Saúde Pública isso não é tão claro. Por outro lado, havia uma diferença substancial do ponto de vista financeiro, por não haver atividade privada, mas hoje em dia as pessoas também privilegiam um pouco mais a sua qualidade de vida e a especialidade do ponto de vista financeiro já compensa.

 

MC – As opções para a Saúde Pública têm-se alargado?

RM – Sim, sem dúvida. A título de exemplo, está prevista a criação, nos Hospitais e ULS, de Serviços de Investigação, Epidemiologia Clínica e de Saúde Pública Hospitalar. Portanto, essas também serão áreas interessantes para médicos de Saúde Pública.

 

MC – Então os médicos optavam menos por Saúde Pública porque as opções eram poucas e pouco atrativas?

RM - A imagem que as pessoas têm do médico de Saúde Pública é a do Delegado de Saúde. Essa é a figura que as pessoas conhecem e bem, pois é, de facto, aquilo que a esmagadora maioria de nós faz. Mas fruto da evolução, e até do próprio sistema, julgo que hoje temos uma diversidade de opções, quer a nível nacional quer até a nível internacional, de carreiras aliciantes.

 

MC – Acha que o internato de Saúde Pública é adequado a esses novos tempos?

RM – O internato é bastante diversificado e permite uma grande flexibilidade de opções para cada interno. Isso pode ser muto estimulante, no sentido em que cada um desenha o seu internato em função dos seus interesses, mas também pode não ter um rumo fixo muito claro e gerar alguma menor assertividade nas opções.

Há alguns aspetos que cada vez mais fazem parte da realidade da Saúde Pública e que agora o internato terá de refletir, como a questão da avaliação de impactos em saúde, por exemplo, que está em franco desenvolvimento, ou a saúde global e o conceito de One Health (a saúde num contexto de ambiente, saúde humana e saúde animal). Há várias oportunidades que o internato pode abraçar, sem haver alteração do atual programa de formação.

 

MC – Temos tido nos últimos anos algum foco sobre a saúde pública – a Doença dos Legionários, a Hepatite A, o Sarampo… acha que tem sido bem gerida a política nesses casos mediáticos?

RM – Nós gostamos mais de intervir numa componente preventiva, mas infelizmente temos surgido quando há problemas, quando há surtos. Temos de ser mais proativos, identificar os problemas de uma forma mais precoce para se poder intervir. Isso poderia ter acontecido por exemplo no surto de hepatite A.

 

MC -- Acha que se está a viver um retrocesso na vacinação?

RM – Há um consenso muito alargado sobre as vantagens da vacinação, quer na comunidade científica quer entre a população portuguesa. Depois temos alguns grupos de pessoas que têm um espaço na comunicação social que não é proporcional à sua representatividade, mas que acabam por intoxicar a discussão. O número de pessoas anti-vacinação é residual em Portugal, e apesar de não devermos baixar a guarda, não é esse o problema principal. Estamos a assistir a uma deterioração das coberturas vacinais e é importante perceber a razão.

Importa realçar sobretudo é que a prevenção poupa dinheiro. Há um estudo que refere que cada dólar investido em prevenção poupa 10 em tratamentos, mas do ponto de vista do poder político não é tão interessante apostar na prevenção, no aumento da literacia ou na promoção de políticas saudáveis como construir, e principalmente, inaugurar um hospital ou um centro de saúde.

 

MC – E que necessidades deteta no trabalho do dia a dia?

RM – A Saúde Pública tem sido o parente pobre do SNS, com um investimento baixo, quer nas infraestruturas quer do ponto de vista dos sistemas. Hoje em dia todas as áreas têm um sistema de informação dedicado e em franca evolução, mas a Saúde Pública, que por excelência tem de usar os dados e fazer a vigilância, não tem sistema de informação dedicado.

Depois, a política de recursos humanos não tem ajudado. Por um lado, o défice do número de especialistas é uma realidade, mas até as próprias unidades têm sofrido uma sangria para outras áreas e, quando está em causa colocar um profissional na área da prestação ou na área da saúde pública, ninguém tem dúvidas em quem é que os agrupamentos apostam, embora, como disse há pouco, numa situação de médio e longo prazo a situação até pudesse aconselhar o inverso.

Os especialistas de Saúde Pública trabalham em circunstâncias muito difíceis, com problemas infraestruturais, problemas de equipamento e de recursos humanos. Hoje em dia, os médicos que exercem as funções de autoridade de saúde não têm apoio jurídico, se tiverem de impor um encerramento ou uma interdição ficam perante uma situação de terem de responder à justiça. Por outro lado, têm situações penosas, como as verificações de óbito, as juntas médicas ou os internamentos compulsivos. São matérias exclusivas das autoridades de saúde, cumprem a função do Estado na defesa da Saúde Pública, há um suplemento remuneratório que está previsto na lei, mas que nunca foi pago, exceção feita à Região Autónoma dos Açores.

 

MC – Quais sãos os grandes desafios que a Saúde Pública tem de enfrentar proximamente?

RM – Por exemplo, há uma área muito importante para a Saúde Pública que é a da contratualização, não só a própria contratualização dos médicos de Saúde Pública, mas também a das unidades de saúde. Nós identificamos as necessidades da população, estamos por dentro de quais são os principais problemas de saúde que afetam as populações, então, entendemos que deveríamos ter um papel na contratualização de todas as unidades, no sentido de direcionar os esforços do SNS para aquilo que são os objetivos prioritários para os ganhos em saúde dos cidadãos.

 

MC – Há lugares para médicos de Saúde Pública nos hospitais. Nós temos um problema sério de infeção hospitalar. Isso é um desafio para a Saúde Pública?

RM – Seguramente que sim. O controlo de infeção é uma questão transversal a toda a prestação de cuidados.

Mas repare, os Serviço de Investigação, Epidemiologia Clínica e de Saúde Pública Hospitalar que a legislação prevê não têm existência, não conheço um que esteja a funcionar. De resto, há pouco tempo houve um concurso para um dos Hospitais da Região Norte e é de lamentar que o concurso previa apenas contratar um médico da carreira hospitalar e não faz muito sentido que assim seja.

Há de facto um espaço de intervenção na questão da resistência aos antimicrobianos. Nós temos diferenciação na área do desenho de estudos, da investigação e, portanto, podemos colaborar com os colegas no desenvolvimento dessa investigação e procurar obter melhores resultados para os doentes e para os cidadãos.

 

MC – Que papel podem os médicos de Saúde Pública desempenhar no combate a práticas crescentes não validadas cientificamente?

RM – Estamos a viver tempos em que as medicinas não convencionais ou alternativas crescem e são alvo de validação pelo poder político, em que a pseudo-ciência é equiparada à verdadeira ciência do ponto de vista da projeção mediática. Temos de ser o garante da medicina baseada na evidência e de que aquilo que é aplicado aos cidadãos tem de facto efetividade.

A Saúde Pública tem também um desafio fundamental, que é fazer passar esta mensagem de que a aposta na prevenção é uma mais-valia que permite colher dividendos no médio e longo prazo e que os custos são substancialmente mais baixos do que apostar depois a jusante, na terapêutica.



12 de junho de 2018

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