Show me the money

Show me the money

O ministro da Saúde corre o risco de ficar famoso pelas piores razões. Propala “enormes” aumentos remuneratórios, quando na prática o que faz é aumentar a carga horária dos médicos.


Quando ouvi o ministro da Saúde falar sobre a maior reforma da Saúde e dos aumentos remuneratórios que vinham aí, numa rápida associação de ideias pensei neste concurso da rádio: "Show me the money". Assim como quando recordo que uma ministra, que ficou famosa pelo confronto aberto e focado na classe médica, afirmou que havia médicos que ganhavam 700 contos, lembro-me sempre da resposta elegante e seca que lhe deu o Guarda Ricardo do saudoso Sam: “Que contos são esses, sra. ministra?”

Também aqui, o atual ministro da Saúde corre o risco de ficar famoso pelas piores razões. Percebo bem a motivação, de gestão e política, que levam o ministro a promover o fim do direito ao descanso compensatório dos médicos, assim como a esticar os limites de horas suplementares das 150 para as 250 horas. Mas o propalar dos “enormes” aumentos remuneratórios, quando na prática o que faz é aumentar a carga horária, em seis a oito horas, e compensar esse aumento do horário de trabalho, deixa-nos muito desconfortáveis.

E ainda mais, se atendermos que o direito ao descanso compensatório dos médicos foi promovido exatamente em nome da segurança dos doentes (e dos médicos). Os estudos realizados em vários países sobre as complicações e outros eventos adversos decorrentes da atividade médica após trabalho noturno justificaram e obrigaram à sua implementação. Situação que o ministro Paulo Macedo percebeu e entendeu enquanto gestor de exceção. Terminar com este descanso volta a colocar em risco a segurança dos nossos doentes.  Que seja um ministro médico a executar esta medida é mais uma razão para o nosso desconforto.

O mesmo se passa com a “dedicação plena”, figura que ouvi pela primeira vez da boca do ex-ministro Adalberto Campos Fernandes, numa reunião do Partido Socialista com os parceiros sociais, para a elaboração do programa do governo nas eleições de 2015. Nessa reunião, a delegação do PS era composta, para além do Adalberto Campos Fernandes, pelo ex-ministro Correia de Campos e pela Antónia Almeida Santos em representação do grupo parlamentar. A ideia era nova e por isso interroguei o meu colega de faculdade sobre que figura jurídica era essa da “dedicação plena”. Conhecia a dedicação exclusiva, que tinha sido eliminada pelo governo socialista numa legislatura prévia, mas não esta.

Esta última referência deixou desconfortável Correia de Campos que se sentiu na obrigação de discorrer sobre a dedicação exclusiva, a sua experiência em França e os motivos da sua extinção. Sobre a dedicação plena, esclareceu finalmente Campos Fernandes, a ideia era premiar os médicos que se dedicassem aos serviços e aos hospitais públicos, promovendo melhorias das suas condições de trabalho, como um maior período de férias e uma progressão mais rápida na carreira. Com eventuais ganhos remuneratórios se os objetivos fossem atingidos. Para ser implementada de cima para baixo, ou seja, dos diretores de serviço para os restantes elementos do serviço, obrigando a uma limitação ou interdição da atividade privada.

Manifestei então a minha preocupação com o sério risco de perdermos os médicos mais diferenciados do serviço público e os últimos diretores de serviço. Desde então esta figura surgiu por diversas vezes, até nos Orçamentos do Estado, sem que se percebesse o que a mesma significava. Foi preciso chegar a 2023 para finalmente percebermos a proposta - seria esta a original? – de que a dedicação plena será a figura jurídica a ser implementada nos Centros de Responsabilidade Integrados (CRI), Unidades de Saúde Familiar (USF) e na Saúde Pública, retirando o direito ao descanso compensatório após trabalho noturno, estendendo os limites das horas suplementares para as 250 horas e limitando a atividade privada dos médicos que os integrem.

As implicações desta proposta poderão ser várias, algumas das quais preocupantes. Estes médicos, ao contrário dos restantes, deixarão de gozar os descansos compensatórios e por isso terão de permanecer muito mais horas nos serviços. Terão igualmente de realizar mais 100 horas de trabalho suplementar que os seus outros colegas, se os serviços assim determinarem. E estarão dependentes da vontade, ou não, dos conselhos de administração e chefias intermédias para poderem realizar alguma atividade privada.

Olhando para os médicos da geração Z que irão integrar os nossos serviços nos próximos anos, tenho dúvidas sobre a atratividade desta proposta. Mais horas de trabalho, mais horas de trabalho extra e mais limitação da sua atividade em geral por mais 900 euros por mês não é lá grande incentivo para fixar os jovens médicos nos serviços públicos. Nem se enquadra na perspetiva destes jovens sobre o seu futuro de vida e de trabalho. Temo que, no final, esta aposta do Governo seja mais uma machadada no que resta dos serviços públicos de saúde.

 

Paulo Simões

Cirurgião

Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos

 

Público online, 18 de setembro 2023

19 de setembro de 2023

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