Em janeiro de 2024 reúnem-se o marketing e a comunicação, a máquina ministerial treinada e oleada, para apoiar o resplandecente ministro do otimismo na sua maior criação. Começará “a grande reforma do SNS”! Tal é a azáfama, que até são confundidos os modelos e sua terminologia, como fez o primeiro-ministro na entrevista à TVI, em que trocou as designações de ULS e USF.
Desta reforma, convém sublinhar, avulta a determinada opção pelo modelo organizacional de Unidades Locais de Saúde. Assim dito, com a ajuda da máquina e dos seus operacionais, parece uma fantástica solução, que fala de unidade, de proximidade e da palavra mágica usada até à exaustão – saúde.
Publicado o Estatuto da direção executiva do SNS esta semana, a maior reforma de sempre do Serviço Nacional de Saúde aí está. É esta a grande revolução necessária para salvar o SNS? Desde que foi criada a primeira ULS, em 1999, não foi publicado um único estudo que comprove a integração de cuidados de saúde prevista e a melhoria dos cuidados de saúde prestados.
Uma reforma desta dimensão – ou de outra – merece estudo e também reflexão crítica, um olhar distanciado da norma, uma visão mais ajustada e fina do que está realmente dentro do embrulho resplandecente.
Comecemos pela gestão. Desenganem-se aqueles que consideram que este modelo levará a uma melhor gestão com menos despesa, os únicos dados publicamente consultáveis revelam exatamente o contrário. E tudo indica que a aposta num sistema menos oneroso será assegurada pelo lado negativo. Isto é, pela poupança nos recursos humanos. Assim sendo, não se tratará de uma organização melhor, com mais qualidade de resposta e de gestão, antes será uma espécie de criação low-cost, à custa da desvalorização dos recursos humanos.
Só os mais distraídos ainda não perceberam que se pretende fazer melhor com os mesmos recursos. Por conseguinte, mais barato. Resta saber quem sofrerá com isso!
De resto, foi anunciado um modelo de funcionamento que assenta numa melhor comunicação entre níveis de cuidados de saúde, o que favoreceria uma melhor prestação de cuidados integrados de saúde. E na verdade a integração de cuidados neste modelo pode ser adequada. Contudo, mantêm-se dúvidas quanto à sua generalização face às grandes assimetrias, problemas e dificuldades verificadas em todo o país. Por outro lado, mantém-se a visão hospitalocêntrica da saúde, como bem traduz o modelo de hospitais ligados aos seus centros de saúde, com uma administração única e um financiamento calculado por utente em vez de ser por serviço prestado. Será fundamental, dar a conhecer os indicadores de saúde supostamente contratualizados, dado que são impostos! Teremos mais limitações e pressões na prescrição de meios complementares de diagnóstico, fisioterapia e medicamentos?
Há ainda dois aspetos relacionados com a preparação desta reforma que vale a pena desde já sublinhar. Um deles, a rapidez do processo de tomada de decisão, outro, a aparente falta de documentação de suporte e de divulgação dos estudos que foram feitos. Finalmente, um facto de importância muito relevante: a ausência de diálogo com os médicos, restantes profissionais de saúde e cidadãos, o que, sejamos justos, já não é surpreendente.
A reforma anunciada prepara-se num contexto em que as dificuldades na organização dos serviços de urgência abundam e se excedem mês após mês; e vão continuar a agravar-se se nada for feito para fixar e contratar mais médicos e outros profissionais para o SNS. Alguém acredita que o modelo ULS vai resolver tudo isso num ápice?
A complexidade da saúde e dos seus sistemas e a necessidade de adaptação a transformações do contexto organizacional e institucional obrigam à procura das melhores soluções de organização na prestação de cuidados de saúde, não o negamos. No entanto, é imprescindível respeitar os princípios da equidade e do acesso universal.
Faltam medidas prévias que nunca se encaram com seriedade. É urgente melhorar a literacia dos cidadãos no que respeita à saúde, doença e utilização das unidades de saúde e é fundamental responder aos problemas socioculturais da população, cada vez mais agravados com a crise pós-pandemia e inflação. Os Centros de Saúde e os Hospitais não podem continuar a funcionar como “centros de dia” para as repostas a estes problemas. É necessário refletir sobre um modelo que responda a isto e recordar que a colaboração com o poder local será determinante. Não é a isso que se assiste. São frequentes os internamentos hospitalares por motivos sociais, de cidadãos que aguardam por uma resposta da Rede Nacional de Cuidados Integrados Continuados. São frequentes as consultas nos Centros de Saúde por motivos sociais e de saúde mental. Volto a questionar, alguém acredita que o modelo ULS vai resolver tudo isso num ápice?
Os Cuidados de Saúde Primários são uma mais-valia para a saúde das populações e isso não deve nem pode ser ignorado. Não há modelo que qualifique os cuidados, à custa de menorização dos CSP e do seu papel central.
As mentes limitadas correm o risco de serem estreitas.
Mónica Fonseca
Vice-presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos
Diário de Notícias online, 14 de outubro 2023