Urgências hospitalares da metrópole de Setúbal

Urgências hospitalares da metrópole de Setúbal

Caos nas urgências hospitalares da metrópole de Setúbal

 

Daniel Travancinha*

Gabriel Paiva de Oliveira**

 

A prestação de cuidados de saúde ao nível das urgências hospitalares está em crise. Não é de agora, há anos que assistimos a uma progressiva e contínua degradação das urgências hospitalares. A crise económica de 2008, que se materializou em Portugal em 2011 com a redução de salários, congelamento de carreiras, inibição de contratações e redução de camas levou a uma quebra na prestação de cuidados. Além disso, a saída de médicos do público para o privado e a contínua e crescente emigração médica contribuem para o empobrecimento dos serviços, com a consequentemente redução de profissionais com capacidade para assegurar os serviços de urgência de forma sustentada.

 

A população

 

A área abrangida pela Sub-região de Setúbal da Ordem dos Médicos engloba uma população superior a 800 000 habitantes, dispersos por uma área geográfica cravada de assimetrias, em que uma importante fatia dos habitantes vive em ambiente rural, tendencialmente mais isolado. O número, nesta região, de doentes sem Médico de Família ascende a cerca de 150 000, o que contribui para um acompanhamento precário ou inexistente e consequente afunilamento desses doentes para os serviços de urgência. A urgência é, para estes doentes, a porta de acesso aos cuidados de saúde. A esta situação associa-se ainda uma considerável iliteracia em saúde e uma crescente intolerância à incerteza quer da população, quer dos profissionais. Muitos doentes recorrem ao Serviço de Urgência simplesmente porque nos Centros de Saúde não há exames complementares de diagnóstico. É difícil explicar a um doente que não precisa de um RX de tórax por causa do seu traumatismo torácico ligeiro de há 5 dias atrás, nem de uma TAC crânio-encefálica pelo seu traumatismo craniano sem sinais de alarme. O cansaço e crescente inexperiência das equipas levam a que, frequentemente, esses exames sejam pedidos, o que alimenta ainda mais o ciclo vicioso.

 

Os profissionais

 

Os médicos estão cansados das urgências. Durante décadas, asseguravam serviços de urgência de 24 horas, frequentemente várias vezes por semana, sem deixar de assegurar a atividade programada. Diz um colega (poderiam ser vários) de 62 anos, que fez serviço de urgência em média duas vezes por semana nos últimos trinta anos (durante a formação específica, frequentemente sem vencimento): “toda a minha vida aconteceu de saída de banco”. Essa geração viu as condições degradarem-se perante os seus olhos. São agora prisioneiros de uma triagem cega, de um sistema informático que, em vez de os potenciar, os oprime. São escravos onde outrora tiveram prazer em trabalhar e, atingindo os 55 anos, muitos não querem continuar a assistir a esta degradação. Estes constituem grande parte dos médicos em atividade. Os mais novos não conheceram outros tempos, e destruídas que foram as bases desse frágil equilíbrio que permitia manter toda uma geração de médicos a trabalhar para além do humanamente concebível, não querem voltar a esse sistema que os afasta da vida pessoal e familiar.

Por outro lado, os médicos de MGF vêm-se “afogados” em listas intermináveis de doentes, indicadores impossíveis de satisfazer, objetivos sempre além das possibilidades de um horário compatível com a sua própria família e mais cliques por dia no computador, numa pletora de aplicações, que segundos num dia. As infraestruturas são inadequadas, o número de profissionais de apoio é insuficiente e quando abrem vagas para mais médicos nos locais onde são mais necessários, não são preenchidas. Porque ninguém quer esta vida, não se tiver alternativa.

Apesar de importante, aumentar as vagas (sobretudo nos cuidados de saúde primários) não resolve o problema. Isto só contribui para incentivar os utentes a recorrerem ao serviço de urgência, porque não têm resposta de outra forma.

 

A solução...

 

Não pretendemos ter a resposta final para este problema. Ele arrasta-se, talvez há décadas e muita gente, de reconhecida e merecida capacidade, o estudou e sucumbiu às suas agruras. No entanto não é razão para desistir. Como princípio, todas as soluções deveriam passar por, de alguma forma, aproximar as relações entre os Cuidados Primários e o hospital.

Vemos o problema em dois prazos. É inegável que a base do problema é o défice que se verifica nos Cuidados Primários, pelo que o seu desenvolvimento através de investimento e criação de incentivos, de forma consequente e que gere resultados, é essencial. Porque não continuar a apostar nas USF modelo B, com melhoramento das condições, motivação e formação como padrão de saúde primária? Por que não considerar descentralizar o atendimento de algumas especialidades do âmbito hospitalar para o contexto de saúde comunitária? No entanto já se discute quiçá há décadas, e apesar de sentirmos que existe vontade política, simplesmente não vemos os meios necessários alocados nem esperamos que que aconteça a curto ou mesmo a médio prazo.

Por outro lado, temos as urgências hospitalares que, na ausência de uma robusta retaguarda de Cuidados Primários, tenta colmatar as necessidades de uma população fragilizada. Talvez faça sentido investir nelas (Urgências) para minorar o problema, até porque, provavelmente, as melhorias necessárias exijam um esforço financeiro bem menor que o reforçar dos Cuidados Primários. Talvez faça sentido considerar formas alternativas de trabalhar, formas alternativas de organizar os serviços que permitam, com os recursos possíveis, maximizar a qualidade do serviço.

Por que não explorar a possibilidade da Medicina de Urgência como especialidade? Principalmente agora, em que tantos colegas ficam de fora das vagas das especialidades existentes. Dignificar a atividade de urgência, profissionalizando-a, proporcionando uma estrutura de serviço, com formação contínua e evolução na carreira, motivaria de certeza muitos colegas e enveredarem por esse caminho. Porque não reorganizar outras áreas clínicas críticas, centralizando recursos, de forma a garantir a capacidade de assegurar atendimento urgente numa lógica de urgência metropolitana? E para que todas estas, ou outras que se considerem válidas, funcionem, porque não criar um sistema de incentivos e condições de trabalho dignas? Para que todos tenhamos, uma vez mais, vontade de fazer urgência.

 

*Presidente da Sub-Região de Setúbal da Ordem dos Médicos

**Conselho Sub-Regional de Setúbal


 

Consulte a versão online do boletim Medi.com disponível aqui.

 


7 de novembro de 2019

Documentos para download

Categorias

Categorias

Arquivo de Notícias

Arquivo