Governo empurra soluções para um futuro incerto

Governo empurra soluções para um futuro incerto

Há muitos, muitos anos, era eu um jovem interno, acabado de terminar o curso de Medicina, preparando-me para fazer o então chamado Internato Geral, agora Internato de Formação Geral, quando decidi aceitar o desafio de ir dar umas aulas de Saúde numa escola secundária no centro da capital do país. Era na altura ministro da Educação Roberto Carneiro e a discussão pública e nos média era a melhoria do sucesso escolar. Para minha grande surpresa, a solução encontrada não foi a promoção do ensino ou a cativação dos alunos para a escola, mas tão somente a diminuição da bitola de avaliação dos professores, com a ameaça de passarmos as férias letivas em reuniões de recurso ou melhoria de notas. Há muito tinha esquecido este episódio do passado, não estivesse a reviver este velho princípio, agora noutro sector da sociedade, a Medicina. 
Após dezenas de anos de sucesso e melhoria dos indicadores de saúde, do estabelecimento dos mecanismos de controlo e promoção da qualidade da formação e dos cuidados de saúde, o país enfrenta um desafio que poderá colocar em causa todo o trabalho realizado até ao momento. Após vinte anos da empresarialização dos hospitais e centros de saúde públicos, da destruição progressiva do modelo prévio assente numa carreira e numa progressiva diferenciação técnica e remuneratória, assistimos à criação do Mercado da Saúde e à concorrência entre tudo e todos para os mesmos bens, sempre escassos. Esta transformação teve consequências nas unidades funcionais dos serviços públicos de saúde, as equipas de saúde, que foram destruídas ou seriamente comprometidas. Esta situação condicionou a qualidade da formação e da prestação de cuidados à população, nos últimos anos de forma aguda e em aceleração progressiva, com os serviços reduzidos à ínfima parte dos mais velhos em final de carreira e dos mais novos ainda a aprenderem os segredos e a arte de uma qualquer especialidade. Os jovens especialistas, com mais ou menos experiência, foram sendo captados pelo sector privado e pelas condições e remunerações dos outros países da União Europeia, deixando de contribuir para a continuidade dos serviços. Ao mesmo tempo a sua mentalidade e perspetiva de vida mudou radicalmente. 
A crise nos anos 90 nos Estados Unidos, onde os jovens médicos bateram o pé e disseram basta às condições de trabalho alucinantes que eram praticadas chegaram à Europa, vinte ou trinta anos depois, mas também aqui este movimento teve consequências nas equipas e nos serviços, um pouco por toda a União Europeia. Como me dizia um intensivista, responsável de um serviço de Cuidados Intensivos nos arredores de Paris, por cada especialista que se reforma têm de contratar três, sim três novos especialistas. Porque os mais jovens já não aceitam trabalhar 24 em 24 horas, sete dias por semana. Querem ter família, ver os filhos crescerem, partilharem alguns momentos com os seus amigos e entes queridos. Esta visão da vida é também ela partilhada pelos médicos mais novos em Portugal e ainda nada se fez para pensar em como serão os serviços no futuro, com a geração Z a dominar a força de trabalho médica.
A todos estes desafios, os sucessivos governos pouco ou nada fizeram, senão empurrar a sua eventual resolução para um futuro incerto. Mas as decisões têm de ser tomadas já, sob risco de ser tarde demais. Um especialista sénior de uma qualquer área cirúrgica leva cerca de 25 anos a ser formado desde a faculdade até à sua diferenciação, capaz de resolver qualquer desafio ou problema que são o dia-a-dia da prática clínica. Se deixarmos evoluir, sem uma qualquer intervenção rápida e eficaz, a situação em que se encontram os serviços públicos de saúde, depressa estes deixarão de ser capazes de formar médicos especialistas e não serão, com toda a certeza, os serviços privados que os irão substituir. 
A forma como o governo tem lidado com esta questão é no seu todo alarmante. Sem soluções para o problema, exerce uma pressão sem precedentes para o aumento das vagas nas faculdades de Medicina, elas próprias em crise por anos sucessivos de cortes orçamentais e com sua capacidade formativa reduzida e posteriormente nos serviços públicos de saúde e na Ordem dos Médicos para aumentarem as vagas de formação na especialidade. Sem nunca acautelar as consequências que poderão advir desta pressa em formar especialistas para as suas necessidades. E sem resposta para as sucessivas fugas dos especialistas dos serviços públicos. Bem patente na forma como têm decorrido as negociações com os sindicatos do sector. 
O binómio número de especialistas e equipas nos serviços de saúde públicos e o total de vagas aprovadas pelos colégios de especialidade da Ordem dos Médicos e o Ministério da Saúde colocam-me algumas questões para as quais gostaria de ter uma resposta.  A forma como estas duas variáveis têm evoluído, com as equipas e número de especialistas nos serviços a diminuir drasticamente e o total de vagas a aumentar progressivamente de ano para ano, levam-me a questionar como estarão a decorrer os processos formativos dos novos especialistas.
Temo que o episódio contado há alguns anos pelo então diretor do departamento de Anestesiologia dos hospitais universitários de Strasbourg possa tornar-se muito comum em Portugal. Contou-me que um dia foi chamado pelo diretor de um dos serviços de Cirurgia para lhe apresentar um professor de cirurgia italiano que estava no seu serviço a realizar um estágio de cirurgia hepática. Depois da avaliação das competências e experiência do referido médico a primeira tarefa que este estava a realizar era um curso de sutura cirúrgica básico. Porque o mesmo não tinha qualquer experiência cirúrgica. Confesso que não gostaria de viver esta realidade em Portugal, porque uma bata não faz um médico, e estamos a formar neste momento a geração de médicos que irão tratar a minha geração nos próximos vinte anos.

 

Paulo Simões
Cirurgião
Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos

 

Artigo publicado na edição online do Expresso a 12 de setembro de 2023

 

12 de setembro de 2023

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