“Não vão encontrar já o SNS de há 10 ou 15 anos atrás”

“Não vão encontrar já o SNS de há 10 ou 15 anos atrás”

Jaime Teixeira Mendes saudou os jovens médicos que prestaram o seu Juramento de Hipócrates, cuja cerimónia se realizou no dia 28 de Novembro, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, manifestou a sua confiança na geração a que pertencem, mas advertiu que são muitas as dificuldades que as políticas de saúde têm levantado à qualidade da formação e ao Serviço Nacional de Saúde.

 

 

Discurso do presidente do Conselho Regional do Sul, Jaime Teixeira Mendes

 

«Em primeiro lugar, mesmo não seguindo o protocolo usual de cumprimentos, quero saudar todos os novos colegas, que daqui a pouco vão prestar o Juramento de Hipócrates, e também os seus familiares e amigos aqui presentes.

Saúdo também todos os presentes nesta mesa e os bastonários e todos os antigos dirigentes da Ordem também presentes.

Todos sabemos que chegam a este momento com esforço e trabalho, com dedicação e que têm procurado atingir o que muitas vezes é um sonho da juventude – chegar a uma profissão que vos realiza e também que vos dá reconhecimento social.

Mas depois destes anos nas universidades, fazer o juramento que vão fazer daqui a instantes é iniciar um novo caminho, que vos trará exigências acrescidas. Vão continuar a ter que estudar e trabalhar muito, mas vão agora passar a lidar com as pessoas que esperam dos médicos sempre uma espécie de intervenção milagrosa, que só nós verdadeiramente sabemos que não nos é possível.

Temos uma profissão reconhecida, de destaque social, mas sabemos também que as nossas possibilidades são limitadas, há sempre limitações para a ciência e para aquilo que da ciência é possível aplicar em benefício do Homem.

Nas faculdades médicas acumularam conhecimentos científicos, vão dentro de pouco tempo encetar outra fase, que vos trará outro tipo de conhecimentos, que vos obrigará a conhecer melhor as pessoas e que vos dará finalmente a possibilidade de ter um papel importante na vida das comunidades.

Estas minhas primeiras palavras são de ordem mais filosófica, eu sou médico mas acho que a Filosofia tem uma enorme importância na nossa actividade. Recordo-vos, por isso, duas frases diferentes, de dois grandes pensadores, que já não são do nosso tempo, mas que me parecem apropriadas ainda hoje para a nossa reflexão e traduzem, a meu ver, a complexidade da profissão que vão abraçar.

 

Voltaire, no século XVIII, provocador e rebelde como sempre foi, mas brilhante também e um pensador que viveu muito mais do que era normal no seu tempo, dizia:

“A arte da medicina consiste em distrair o paciente enquanto a Natureza cuida da doença”.


Por outro lado, Marcel Proust, filho de um professor de Medicina e um homem que, em finais do século XIX e início do século XX, se afirmou entre o talento e também o despreconceito, escreveu:

“Acreditar na medicina seria a suprema loucura se não acreditar nela não fosse uma maior ainda, pois desse acumular de erros, com o tempo, resultaram algumas verdades”.

 

Dois pensamentos destes exigem sobretudo que se compreenda o mundo a partir do nosso ponto de vista, mas dão-nos a medida certa da nossa importância, que espero seja a vossa também a partir de agora.

 

Deixemos a Filosofia e passemos à vida prática.

Acabaram há poucos meses os vossos estudos universitários, vão começar uma nova fase de aquisição de conhecimentos e a maioria deles de ordem prática, e que vão encontrar afinal?

Dentro de pouco tempo farão a vossa entrada no Serviço Nacional de Saúde, que generalizadamente é considerado uma das mais preciosas conquistas da democracia e um dos principais factores de desenvolvimento do nosso país nas mais recentes três a quatro décadas.

Não vão encontrar já o SNS de há 10 ou 15 anos atrás. Muito recentemente, o Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos, a que presido, encomendou um estudo que tem como ponto de partida a revisão histórica dos cuidados da assistência pública desde o Estado Novo até aos nossos dias. O estudo vai ser apresentado publicamente no próximo sábado, dia 3 de Dezembro, às 17h00, no nosso auditório – aproveito até para vos convidar a estarem presentes –, mas posso adiantar-vos, de resto isso já foi noticiado no Expresso deste fim-de-semana, que as conclusões apontam para uma situação pior agora do que há anos atrás.

Não sou fatalista e muito menos estou pessimista, até porque temos todos razões para ter fundadas esperanças nas novas gerações de médicos, mas temo que se esteja muito em cima do risco de termos dois tipos de assistência: uma para ricos e outra para os mais pobres. Entre as conclusões, aponta-se que várias mudanças no SNS, como a empresarialização dos hospitais, geraram tendencialmente um novo sistema dual, em que a população com rendimentos tem acesso a cuidados mais especializados, ficando cada vez mais um sistema desnatado para a população reformada, desempregada ou de baixos salários. E quanto aos médicos e ao nosso trabalho, dos dados estudados resulta a conclusão de que o trabalho médico não é potenciado e a formação de internos fica comprometida em função da perda dos formadores mais capazes.

Na verdade, os internos que entravam há uns anos encontravam um sistema de ensino pós-graduado muito bem estruturado, com médicos mais velhos preparados e com disponibilidade para a formação.

Hoje, os mais velhos enfrentam grandes dificuldades para vos apoiar, assoberbados de trabalho porque as medidas economicistas levaram a que fossem reduzidas horas de trabalho extraordinário e que muitos procurassem a medicina privada, que muitos emigrassem e que os que estão próximos da reforma o façam antecipadamente.

É este o quadro que vos será apresentado. Cabe-vos exigir e trabalhar para que a formação tenha o selo de qualidade que é reconhecida em todo o mundo aos médicos portugueses.

Começaram por destruir as carreiras médicas e durante dez anos não foram abertos concursos para a progressão. Há uns dois anos finalmente abriram-se vagas para assistentes graduados seniores e consultores, mas é muito pouco e é muito penalizador para a formação também.

Como sabem, a formação especializada está, e muito bem quanto a mim, remetida aos hospitais e centros de saúde públicos. Consequentemente se não temos aí um número aceitável de médicos mais velhos para a vossa formação, o ensino pós-graduado perde qualidade.

Segundo os dados mais recentes que temos, entre 2005 e 2016 reformaram-se 1500 médicos seniores e só foram abertas 350 vagas em concurso para esses lugares.

Esta norma de desnatamento do SNS parece ser deliberada para que as carreiras médicas, que considero ter sido o grande pilar da evolução da nossa Medicina, se esvaziem.

Há dias, numa notícia sobre este assunto perguntava-se se as carreiras médicas fariam sentido para os mais jovens. Digo eu que sim, que fazem muito sentido. O resultado da destruição das carreiras tem sido a degradação das remunerações, a redução de médicos no SNS e da sua disponibilidade e o aumento da influência dos privados de forma a que obtenham mais mercado.

Para nós a saúde não é um mercado, portanto é necessário, para evitar que o SNS se degrade, que vos sejam dadas boas condições de formação. Não esqueçam que dificilmente alguma vez o sistema privado vos poderá facultar a formação adequada e ao nível da que temos nas unidades públicas. A formação significa investimento e esse investimento, para os privados, é um custo porque é mais fácil e barato contratar médicos já formados no SNS.

O dia de hoje é de festa para todos e seria para mim mais agradável não ter que vos chamar a atenção para estes problemas, mas é isto que temos e é este o cenário que vão ter que enfrentar.

Contudo, já vos disse, não sou fatalista e também não estou pessimista, porque acho que vocês acreditam nos mesmos valores em que nós, os mais velhos, nos formámos. São valores que vão jurar seguir na vossa vida e que devem significar muito mais do que palavras apenas, não sou hoje, mas sobretudo no futuro, quando tiverem que tomar uma decisão pensem nelas, nas palavras que vamos dizer a seguir.

Peço-vos então que preparem o vosso juramento, que em conjunto vamos dizer.»

 

Seguiu-se o Juramento de Hipócrates dos novos médicos.

10 de outubro de 2003

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